As sete vidas do Bairro Alto

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Novo equilíbrio é necessário para o futuro do único bairro cultural de Lisboa. O episódio do encerramento dos bares às 2 da manhã apenas veio explicitar isso.

Não é novo. Já ouvimos desabafos destes ao longo dos anos ("o Bairro Alto já não é o que era", "está cada vez mais degradado", "as ruas estão uma miséria", "gente a mais"), mas no último ano as visões sombrias aumentaram. Ele é o ruído, bares em excesso, toxicodependência nas ruas ou conflitos de interesses entre os diversos actores. O equilíbrio parece em risco e a mais recente medida dos poderes públicos de encerrar os bares às duas da madrugada é apenas mais um capítulo desse debate.

O Bairro Alto é importante. O "boom" dos anos 80, que o afirmou como lugar de boémia e cultura, foi determinante em termos simbólicos, mas muito antes já era lugar de encontro, de tertúlia e de animação cultural.
Hoje é área residencial. É zona de comércio, animação nocturna e de restauração que não só tem resistido, nas últimas décadas, ao irromper de outros pólos (Avenida 24 de Julho, Docas, Expo) como nos últimos anos - principalmente depois da abertura do metro no Chiado - tem atraído mais gente. É em termos culturais uma das áreas mais activas e atractivas da cidade, o que pode ser constatado pela quantidade e qualidade de agentes e actividades que aí se concentram e se relacionam. É dessa conjugação de actuações, e da forma como se relacionam entre si, que depende o equilíbrio da zona. Uma harmonia que aqueles que viveram os anos 80 dizem já não existir.

O "meu" Bairro

"O 'meu' Bairro morreu", afirma Manuel Alvarez, arquitecto, 45 anos. "Hoje vou lá, vejo toda a gente na rua, de copo na mão e não sinto vontade de partilhar. Antes jantava-se, conversava-se, dançava-se. O Bairro Alto está moribundo. Está a morrer aos poucos."
"Aborreço-me", afirma o cineasta Jorge Cramez que viveu intensamente a década de 90 [ver texto sobre o bar Captain Kirk] "Posso pensar nisso dessa forma, mas não me parece que tenha a ver com a idade. Sinto é que antes havia um ritual no sair que se perdeu."
Ambos, no entanto, diferenciam a vertente diurna e nocturna, a vocação cultural da actividade noctívaga. Tal como DJ Rui Murka, 36 anos. "Hoje a minha relação com o Bairro é diurna, para comer, cortar o cabelo, fazer compras na Rua do Norte, comprar discos ou, à noite, ver concertos, exposições ou encontrar-me com alguém."

Mas esta visão está longe de ser partilhada por gerações mais novas. Com maior incidência às sextas e sábados, chegam em grupos, normalmente encontram-se na Praça Camões a partir das 22h. Pouco tempo depois enchem as ruas, o estacionamento torna-se impossível, a circulação pedonal complicada e, muitas vezes, os parapeitos das janelas servem para deixar copos vazios.
"Quando tinha 15 anos ia para o Loft, em Santos, ou para o Paradise Garage, em Alcântara, porque os meus pais não gostavam que fosse para o Bairro", conta Ana Prazeres, estudante, 19 anos. "Mas há dois anos comecei a vir para aqui e gosto muito". Foi no Bairro que começou a contactar com "gente das mais diversas 'tribos'." O companheiro, Pedro Freire, 20 anos, reforça: "Isto é único, não existe nada assim no país, onde se possa vir beber um copo, ver um concerto na ZDB ou conviver nas ruas com pessoas que não se encontram em mais nenhum local."
O valor icónico de lugares que marcaram as décadas de 80 e 90, como o Frágil, Três Pastorinhos ou Captain Kirk perdeu-se. Claro que continuam a existir espaços que se diferenciam (bares como Maria Caxuxa, Clube da Esquina, Mexe Café ou Purex, bares dançantes como o Frágil ou o Bedroom, livrarias como a Ler Devagar ou a Galeria ZDB), mas é na rua que tudo acontece.

Apesar das tentativas de controlo, os bares multiplicaram-se. O investigador Pedro Costa, que estudou o bairro [ver texto nestas páginas], diz que os poderes públicos foram sensíveis à questão. "O problema é que isso não inviabilizou nada, simplesmente inflacionou os preços, fez com que os trespasses se fossem multiplicando e criaram-se subterfúgios, como os bares de apoio."
Um dono de um bar, que prefere manter o anonimato, refere que esse é o problema do território neste momento. "É injusto olhar para todos os espaços nocturnos de forma nivelada. Alguns geram interesse cultural, porque fazem participar as pessoas numa dinâmica criativa e estimulam, enquanto outros são pequenos sítios que se limitam a vender copos para a rua. Como é possível que sejam tratados de forma uniforme?"

Os conflitos no bairro, resultantes da exploração dos recursos e nas formas de os regular, não são novos. As tensões são múltiplas, seja entre residentes e frequentadores, entre moradores tradicionais e novos residentes, entre comércio tradicional e novas actividades, entre utilizadores diurnos e nocturnos ou entre agentes culturais e reguladores públicos das suas actividades.
Até agora, a intervenção externa não tem sido muito necessária. Tem havido uma espécie de auto-regulação que emerge do próprio sistema do bairro, resultante de uma multiplicidade de mecanismos. Mas os perigos decorrentes do excesso - de bares e de pessoas, com o que isso acarreta de descontrole à volta - podem levar ao colapso desse processo. O conflito à volta dos horários de encerramento apenas explicitou essa ideia.

A intervenção pública poderá não fazer sentido em muitas questões, mas no caso da limitação do ruído, é defensável que aconteça, dizem os moradores. Para reduzir o barulho, a Câmara Municipal de Lisboa implementou, em Outubro, o encerramento dos bares às duas da manhã. Belino Costa da Associação de Comerciantes do Bairro Alto diz que existe uma "enorme insatisfação", já que é uma medida de excepção que "impede a concorrência em igualdade de circunstâncias com outras zonas da cidade."
"Não duvido das boas intenções de quem tomou essas medidas", diz Mário Augusto, designer, de 29 anos, que vive na zona, "o problema são os efeitos colaterais. Agora toda a gente sai dos bares em massa à mesma hora, ficando a marinar por aí, criando focos de tensão. É como a história dos 'graffiti'. Toda a gente sabe que as zonas onde são proibidos são as preferidas de quem os faz. Ou seja, ao querer reprimir-se, está-se a convidar."

A questão dos horários é apenas uma, entre outras, reveladora de conflitos de interesses, num momento em que a área vive momentos de transformação. O receio da especulação imobiliária - intensificado desde que se soube da reconversão, em condomínio privado, do Convento dos Inglesinhos - ou o temor que a zona se torne demasiado turística, são outros temas que provocam debate aceso.

Mas, apesar do equilíbrio precário e da insatisfação de muitos actores envolvidos na dinâmica de um bairro cultural com as características do Bairro Alto, nada de essencial ainda se perdeu. Ao longo da história a zona tem conseguido manter o seu dinamismo e apresentado uma grande capacidade de regeneração.

Hoje continua a manter públicos, renovando-os, e conserva o ambiente - apesar de se poder dizer que está mais degradado - que lhe deu reputação, ao mesmo tempo que manteve as redes e formas específicas de interacção com outras actividades que lhe permitiram afirmar-se.
Nas cidades estáveis, maduras e dinâmicas, com suficiente massa crítica, existe grande capacidade de renovação. Há aptidão para alimentar, periodicamente, novos ambientes criativos. Nos últimos anos, o prolongamento do Bairro Alto tem sido encetado na direcção do bairro da Bica, Cais do Sodré, Cais da Pedra (Lux) ou Santos.

Mas até pode acontecer que surja um novo eixo cultural e boémio noutra zona da cidade. "Lisboa tem dimensão para ter outros bairros culturais", defende Pedro Costa, "mas necessitariam de uma actuação pública mais vincada do que acontece no Bairro Alto, seja no sentido de facilitar a apropriação do espaço pelas actividades culturais, seja de disciplinar as operações urbanísticas que lá acontecem."

Quem sabe se qualquer coisa capaz de gerar uma dinâmica semelhante à do Bairro Alto não poderá nascer na Baixa, em Braço de Prata (Cabo Ruivo), onde a reutilização de espaços inexplorados é possível, na Almirante Reis, onde as rendas ainda são baratas, ou na zona industrial de Alcântara? O Bairro Alto, algo congestionado, até era capaz de agradecer.

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