Morreu o escritor dos afectos

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Ensaísta, cronista e romancista. Fundador de uma das mais importantes revistas do Portugal em luta contra a ditadura. Alçada Baptista, um "indisciplinador da alma"

É recorrente chamarem-lhe o escritor dos afectos, mas ficará certamente mais como uma das figuras do catolicismo progressista português, a "oposição consentida" contra a ditadura salazarista.

António Alçada Baptista, ensaísta, cronista, romancista, fundador da Moraes Editora e da revista O Tempo e o Modo, morreu ontem à tarde, em casa aos 81 anos. O seu funeral decorre hoje em Lisboa às 13h30, partindo da Igreja das Mercês para o Cemitério dos Prazeres.

Um católico que por momentos "se deixou deslumbrar pelo marxismo", que voltou à base, mas, mesmo assim, viveu a revolução sexual, descobriu o corpo e o mundo segundo as mulheres, permanecendo sempre como defensor da democracia e da liberdade. Uma das vozes firmes reunidas à volta do Concílio do Vaticano II que a 30 de Dezembro de 1972 fizeram parte da vigília da Capela do Rato, a mais emblemática iniciativa dos católicos contra a ditadura e a guerra colonial.

Ou "um homem extremamente bom, extremamente afectuoso", que investiu muito do seu próprio dinheiro na criação e manutenção da Moraes, um dos pólos que deu voz a essa mesma "oposição consentida", nas palavras do também escritor Urbano Tavares Rodrigues, amigo de adolescência, dos tempos do Clube Estefânia, dos bilhares, das conversas sobre filosofia e política.

O Tempo e o Modo Política, pois. Um comunista e um católico numa amizade de uma vida: "As nossas divergências ideológicas nunca empanaram a nossa amizade e a nossa profunda compreensão um do outro. Ele era um homem muito aberto, nada sectário. E a compreensão do mundo feminino também sempre nos aproximou. Ele adorava as mulheres. Era confidente de imensas, uma coisa raríssima num homem português. Foi um excelente escritor, cheio de sensibilidade, com uma enorme compreensão do ser humano." Nascido na Covilhã a 29 de Janeiro de 1927, Alçada Baptista fez a sua formação inicial num colégio jesuíta, onde seria influenciado pelo cristianismo e por pensadores como Emmanuel Mounier e Teilhard de Chardin.

Formou-se pela Faculdade de Direito de Lisboa, mas apenas exerceu advocacia entre 1950 e 1957. O essencial do seu percurso seria na cultura. Logo no ano em que deixou de exercer fundou a Moraes, à frente da qual permaneceria até 1972.

Pelo caminho a 29 de Janeiro de 1963 tornara-se já também num dos fundadores e primeiro director d' O Tempo e o Modo, mobilizando intelectuais católicos como Nuno de Bragança, Pedro Tamen, João Bénard da Costa, Alberto Vaz da Silva, Mário Murteira, Adérito Sedas Nunes, Francisco Lino Neto, Orlando de Carvalho e Mário Brochado Coelho. A revista, depois, alargou-se a outros sectores da esquerda (Mário Soares, Salgado Zenha, Mário Sottomayor Cardia...), incluindo os líderes estudantis do momento (Manuel Lucena, Vítor Wengorovius, Medeiros Ferreira...), acabando mais tarde por perder as suas raízes católicas (com Vasco Pulido Valente, Helena Vaz da Silva, Jaime Gama, Luís Miguel Cintra, Jorge Silva e Melo, Nuno Júdice, Manuel Gusmão...).

"Excelente ensaísta" "Um indisciplinador da alma que contribuiu para a consciencialização de muitos cidadãos", além de um "excelente ensaísta, dotado de uma grande bagagem mental, sempre preocupado com a condição humana", como dizia ontem à Lusa Vasco Graça Moura, outro "amigo de há muitos anos" que relembra também obras como Peregrinação Interior I Reflexões sobre Deus (1971), a que se seguiram Conversas com Marcello Caetano (1973), Peregrinação Interior II O Anjo da Esperança (1982) ou os mais recentes Os Nós e os Laços (1985), Catarina ou o Sabor da Maçã (1988) e O Riso de Deus (1994).

Candidato pela Oposição Democrática nas eleições para a Assembleia Nacional em 1961 e 1969 e assessor para a Cultura do então ministro da Educação, Veiga Simão, entre 1971 e 1974, foi director do jornal O Dia no primeiro ano do pós-revolução e funcionário da Secretaria de Estado da Cultura de 1978 a 1986, tendo sido um dos grandes impulsionadores da criação do Instituto Português do Livro (IPLB), de que foi o primeiro presidente.

Em 1983, Alçada Baptista recebeu de Ramalho Eanes a Ordem Militar de Cristo e, em 1995, de Mário Soares, a Grã-Cruz da Ordem do Infante.

Nos últimos anos, foi um dos defensores da geração de escritoras como Rita Ferro, Inês Pedrosa e Margarida Rebelo Pinto, tendo prefaciado e apresentado vários dos seus livros.

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