Uma noite bairrista para Raquel

Antes do fado houve, pois, varinas, aguadeiros, leiteiros, vendedoras de laranjas e amoladores

Raquel Tavares tinha prometido trazer uma casa de fados para a sala e conseguiu: no palco e à frente dele havia uma dúzia de mesas postas e preceito, toalhas aos quadrados e púcaros de barro, alumiadas por velas; e antes de ela entrar em cena, a cantar "Rosa da Madragoa", cruzaram o espaço cénico memórias de uma Lisboa que já não existe, a dos pregões e vielas, teatralizada pelo grupo Grupo Etnográfico Mil Raízes, do Millennium BCP (quem diria que os bancos também servem para estas coisas?). Antes do fado houve, pois, varinas, aguadeiros, leiteiros, vendedoras de laranjas e amoladores. Que, findos os pregões, ocuparam as mesas como espectadores. Um cenário vivo, bairrista até à medula mas convenientemente aconchegante. Acompanhada por Guilherme Banza (guitarra portuguesa), Marco Oliveira (viola de fado) e Fernando Araújo/Yami (baixo), Raquel levounos então de visita ao seu Bairro. Nervosa, de início, recuperou a tempo e ofereceu à plateia bons momentos de fado, fazendo desfilar "Ouve Lisboa, Senhor não sei o meu nome" (que, cantado numa quase penumbra, aproximou ainda mais a audiência do ambiente das casas de fado) e, entre outros, Fado lisboeta, "Lisboa meu amor, Sofrendo da alma" (Amália musicada por Banza) ou "Madrugadas serenas", de Hélder Moutinho, que lhe valeu prolongados e merecidos aplausos. Depois de uma rapsódia a três, que levantou ainda mais os ânimos, Raquel recriou em palco o dueto a capella com a fadista Fátima Fernandes em "Tia Dolores", mas a partir da gravação feita para o disco (um truque aceitável, dadas as circunstâncias) e, em seguida, empunhou a guitarra para cantar (e tocar, numa malha simples) o Ardinita. Viriam ainda "Que seja amor, Fala da mulher sozinha" e "Olhos garotos", também a puxar aplausos. A marcha "Lisboa garrida" fechou a noite em tom de festa e, no encore, veio um dos fados mais sentidos da noite, ainda para mais diante da sua criadora, Beatriz da Conceição (na primeira fila da plateia): "Deste-me um beijo e vivi". Uma interpretação excelente e emotiva, a provar a garra fadista cada vez mais afiada de Raquel.

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