"Aos 78 anos já não quero ser 'Dirty Harry'"

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É o 66º filme de Eastwood enquanto actor e o 29º como realizador. Alguma da solidão que se sente nele, concorda Clint, já a conhecemos de outros filmes seus. De "Dirty Harry", de "Million Dollar Baby", de "O Sargento de Ferro"... Mas "Gran Torino" é o filme de uma solidão terminal, de algo que acaba. É o filme de um último acto - o de um reaccionário e resmungão veterano da Guerra da Coreia que não reconhece o mundo que o rodeia.

Pela tarde, o gabinete de Clint Eastwood está calmo e banhado em luz dourada. Ao contrário de outros bangalós nos estúdios da produtora Warner Brothers em Hollywood, o de Eastwood apresenta um ambiente rústico e móveis tradicionais que conseguem ser tão práticos quanto elegantes e distintos. O que fica bem a este ícone que já completou 78 anos, começou a sua carreira como um John Wayne mas que parece estar a terminá-la como um John Ford.

A mais recente aquisição para a decoração do escritório é um sombrio "poster" de "Gran Torino", o 66º filme de Eastwood enquanto actor e o 29º como realizador. Na fotografia a preto e banco, a cara da estrela está fixada com o seu famoso esgar severo e determinado, uma arma que há décadas vem sendo apontada aos vadios e escroques das ruas dos seus filmes.

Eastwood é o primeiro a dizer que, para "Gran Torino", um filme que na América e nos mercados europeus está a bater os recordes de bilheteira de um filme realizado e protagonizado por Eastwood, foi lançada alguma publicidade enganosa, com o seu dramático esgar e a sua subliminar mensagem para os fãs de longa data, que poderão pensar que o seu filme é acerca de "Dirty Harry" Callahan a trabalhar num caso de roubo de automóveis.
"Acho que o filme, com as suas 'nuances', vai surpreender algumas pessoas", diz, enquanto se senta num sofá no escritório. "Se fosse apenas um filme de porrada, bem, então eu não o queria fazer. Já fiz esse tipo de filmes. Actualmente, só faço um filme que tenha algo para dizer. Aos 78 anos já não quero ser 'Dirty Harry'."

Do outro mundo

Em vez disso, traz-nos o irritável Walt Kowalski, um veterano da Guerra da Coreia que enviuvou e que considera a sua casa isolada e o respectivo pátio como território ocupado no meio de um bairro que ao longo das décadas se foi transformando. A maior das mudanças foi a chegada de vizinhos de etnia hmong, cujas faces, linguagem e cultura asiáticas relembram a Kowalski os seus próprios negócios escuros, que ele esperava ter deixado para trás numa terra distante. Essas memórias e uma guerra a crescer na vizinhança com jovens membros de um gangue lançam as raízes do conflito do filme e, bem, quem reconhece o esgar no "poster" já sabe que há um duelo a caminho.

O título do filme refere-se ao bem mais precioso de Kowalski: um potente e resplandecente automóvel, um "Gran Torino" de 1972 que está guardado na sua garagem, juntamente com uma colecção de ferramentas que foi adquirindo ao longo da vida e que trata com reverência, como se fossem lembranças de uma época em que os homens conseguiam consertar coisas e as pessoas diziam o que pensavam e trabalhavam arduamente. Existe em Kowalski algo de Archie Bunker [personagem principal da série televisiva de humor dos anos 70 "All in the family", em português "Uma família às direitas"], com o seu profundo e impressionante conhecimento de termos raciais.

Eastwood ri-se com a ideia de que o filme é um dicionário do léxico de intolerância dos brancos norte-americanos. "Ele pode pertencer a outro mundo mas é um homem típico da sua geração. Nos anos 40 toda a gente falava assim. Lembro-me de ir para a Oakland Tech, que era uma escola secundária mas que também tinha ligações com uma escola profissional. Todos os veteranos que voltavam da Segunda Guerra Mundial iam para lá estudar, por isso acabávamos por estar no mesmo espaço de tipos que tinham 25, 26, 27 anos. E eles falavam assim. Chamavam uns aos outros Sam Judeu, Joe Irlandês, Frank Latino, ou lá o que fosse. Mas é claro que diziam sempre isto com um sorriso na cara. Se dissessem sem um sorriso na cara, bem, aí então já queriam dizer outra coisa."

Sobre a perda

Eastwood, como é seu hábito, fez o filme rapidamente, barato e desprezando a convenção que existe dentro da indústria cinematográfica americana que obriga a gravar "take" após "take" da mesma cena. Filmou em Detroit e usou não profissionais - muitos dos quais não falavam inglês - para interpretar os elementos da comunidade hmong. Na maior parte das vezes, dizia aos seus actores amadores para ensaiarem uma cena no local das filmagens e secretamente dava um sinal para a equipa técnica começar logo a gravar. 
"Na realidade, metade das vezes filmei-os sem eles saberem e depois voltava a filmar e juntava tudo", conta sorrindo. "Tinha que ter muito cuidado para conseguir controlar tudo. Não me posso dar ao luxo de ficar parado e estragar tudo. Temos que estar preparados. Se não queremos perder nada, temos que ter a câmara a rolar. Actores não profissionais não repetem as coisas. Fazem por acaso coisas que acabam por se revelar óptimas." 

Os seus filmes mais recentes - "A Troca", "Million Dollar Baby-Sonhos Vencidos", "Mystic River", "As Bandeiras dos Nossos Pais" (para os quais também compôs a banda sonora) e "Cartas de Iwo Jima" - parecem ser ensaios sobre a perda, almas feridas, sacrifício e pecados do passado. "Gran Torino" trata realmente de todos estes temas, mas Clint declara que não procura um modelo para os seus projectos, apenas uma grande história para contar.

"Gostei do percurso dele", diz. "Kowalski é assombrado pelo seu passado. E todos os seus amigos estão mortos ou a morrer. E é mesmo isso que acontece quando temos 78 anos. Gosto do facto de Kowalski aprender alguma coisa. Tive que o colocar neste tipo de situação extrema para ele dar um passo na direcção da tolerância para com outras pessoas e outros costumes. Ele considera estas pessoas como bárbaras porque elas cortam as cabeças às galinhas. Isso parece afectá-lo. Mas ele já cortou cabeças a seres humanos, ou coisa do género."

Eastwood, que já afirmou que esta é a sua última presença como actor, conta que uma razão por que ficou com o papel do protagonista é, bem, não haver muitos outros actores que pudesse contactar. Gene Hackman, diz, poderia ter sido interessante, mas já está reformado. Talvez Robert Duvall. Mas, no fim de contas, o realizador decidiu que era um papel que valia a pena e que tinha uma vaga semelhança com a sua recorrente personagem de Harry Callahan, o polícia de São Francisco que passou cinco filmes a recarregar a sua arma.
"Talvez ele tenha alguma da mesma solidão", pondera Eastwood. "Kowalski acredita na lei à maneira tradicional, não está a tentar endireitar tudo o que está torto. Talvez tenha um pouco de Frankie Dunn, a personagem que interpretei em 'Million Dollar Baby'. Talvez um pouco do tipo que fiz em 'Heartbreak Ridge/O Sargento de Ferro'. Mas este tipo tem a sua personalidade própria. É por isso que quis fazer o papel dele. Nesta altura da vida, já não fazia sentido fazer algo que já tivesse feito antes."

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