Empate sem golos

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Emir Kusturica filmou "Maradona", documentário sobre o futebolista argentino, e acha-se igual a ele.

Na Igreja Maradoniana, deus é humano. Divino, mas pecador como todo o Homem. O baptismo é uma cerimónia de enganos. Antes de professar a fé, é preciso imitar o golo duvidoso que Maradona marcou, com "a mão de Deus", nos quartos-de-final do Mundial do México em 1986. Porque esse foi "um acto de justiça", a vingança dos pobres e oprimidos. Na Igreja Maradoniana não há santos, mas Emir Kusturica idolatra a santíssima trindade. Eis o cordeiro que salva os fracos: Maradona - o bom, o mau e o revolucionário.

A primeira conclusão que se retira de "Maradona", documentário que estreou ontem em Portugal, é que o realizador sérvio é um acólito do futebolista argentino. "Maradona by Kusturica" (título original em inglês) é difícil de catalogar. É um encontro de egos: de um lado, Maradona, e do outro Kusturica (ou "o Diego Armando Maradona do cinema", como é apresentado no início do filme). É também uma viagem ao universo pessoal de ambos, no tempo que dura uma partida de futebol. E por último é também um panfleto político, um resumo ou exemplo da vitória dos pobres sobre os ricos, da denúncia dos oprimidos contra os poderosos.

Na sua autobiografia, "Eu sou El Diego" (Oficina do Livro, 2001), Maradona afirma: "Às vezes, penso que toda a minha vida está filmada, que toda a minha vida está nas revistas. E não é assim, sabem? Não é assim. Há coisas que estão só cá dentro, no meu coração, e que ninguém sabe." O documentário de Kusturica não releva o que continua escondido. O cineasta teve três anos (2005-2008) para preparar uma goleada, mas acaba por empatar. Sobretudo porque não gosta das regras do jogo que tinha pela frente. "Quando se é perseguido pelos jornalistas, começa-se a odiá-los, sobretudo quando eles tentam sacar os segredos privados de alguém. E agora vou fazer um retrato de uma das pessoas mais famosas do planeta e tenho de desempenhar esse papel que pertence àqueles de quem nunca gostei", confessa no filme. "Sinto-me um 'paparazzo' à espera que uma estrela acorde e se coloque em frente à minha lente para que eu possa vender as fotos aos tablóides."

A dada altura, assume que, ao fim de dois anos, ainda não percebeu aquele pequeno grande jogador que iluminou tantos estádios e tantas vidas, ao mesmo tempo que, em privado, se entregava às trevas da cocaína. É de agradecer a honestidade. Porém, por debaixo da música que desempenha um papel essencial no filme, há histórias que não saem da penumbra. Manu Chao a dedicar uma música a Maradona, cantando que "a vida é uma tômbola", serve para lembrar que a sorte e o azar fazem parte do jogo como da vida. Mais difícil é demonstrar por que é que os sortudos procuram muitas vezes o azar.

Duas partes do mesmo mundo

"Maradona" começa com uma citação de Baudelaire - "Deus é o único ser que, para reinar, não precisa sequer de existir". Segue-se Kusturica em cima do palco, agarrado a uma guitarra, interpretando os primeiros acordes do tema-título de "O Bom, o Mau e o Vilão", de Sergio Leone. É a pauta apropriada para esta viagem que começa na Argentina, com uma visita a Villa Fiorito, terra onde o jogador nasceu, nos arredores de Buenos Aires, e inclui paragens que, à primeira vista, são injustificáveis, como a Sarajevo de Kusturica. Argumenta o realizador que Fiorito poderia ser Gorica, tal como Maradona uma personagem de alguns dos seus filmes. Duas partes de um mesmo mundo: onde a pobreza não envergonha, antes faz parte do sofrimento que honra aqueles que trabalham para sair do buraco das suas vidas. Maradona preferiu o pobre Boca Juniors aos milionários do River Plate? E depois? Também Kusturica trocou o conforto de Deus pelo desassossego comunista e depois este pela irrealidade do cinema.

O cruzamento destes dois universos existenciais pode, contudo, causar dissabores em alguns espectadores. Pode-se querer ver este filme porque se gosta de futebol e Maradona, ou porque se gosta de cinema e de Kusturica. Em qualquer dos casos, poucos sairão satisfeitos. Quem vai à procura da radiografia de Maradona, encontra Kusturica em frente ao espelho.

Dê-se um desconto às declarações políticas de Maradona a favor de Fidel Castro ("um homem com grandes tomates"), as cenas ao lado de Hugo Chávez e Evo Morales, as investidas contra Bush ("o lixo humano"), e as cenas de animação em que o futebolista ridiculariza, ao som de "God Save the Queen" (Sex Pistols), figuras da política britânica e norte-americana, como Margaret Thatcher, o príncipe Carlos, Isabel II de Inglaterra, Tony Blair, Reagan ou Bush. Esses trechos são os mais dispensáveis de toda a obra, porque são pura glorificação. Kusturica entende que Maradona é um "Sex Pistol do futebol", uma "vítima da cocaína". É um tratamento reverencial para com o antigo camisola número dez da selecção alviceleste, bem sintetizado no momento em que o cineasta sustenta que Maradona teria merecido um retrato de Andy Warhol.

Há passagens redentoras. Momentos em que os egos submergem, deixando o documentário respirar a sua essência, sem que o narrador sufoque o objecto do filme. Em que o jogador, sozinho perante as câmaras, revela as luzes e sombras da sua vida pessoal: o desgosto que tem por ter perdido tantos momentos nas vidas das filhas (mais pela droga do que pelas viagens, ou jogos ou estágios), por exemplo. O filme de Kusturica é bom quando traz ao de cima o que existe por baixo das tatuagens de Fidel e "Che" que Maradona perpetuou no seu corpo. Aí, sim, chega a ser revelador, muito mais do que quando repassa imagens já conhecidas e banalizadas nos "youtubes" e ecrãs televisivos. Como aquelas que recuperam o primeiro regresso de Maradona a Nápoles - onde o futebolista conduziu os "pobres do Sul" a uma vitória retumbante sobre os "ricos e poderosos do Norte". Imagens que são dignas do "No Comment" do canal Euronews, mas que aqui funcionam como tapa-buracos, preenchendo os vazios causados pelo facto de Kusturica não se sentir confortável na pele de "jornalista" ou "investigador". Todo o documentário é preenchido por estes remendos que tocam diferentes planos da vida do jogador sem permitir, contudo, que se compreenda a sua relevância. Quem não conhece Maradona - e daqui a 20 ou 30 anos serão muitos - vê aqui a azáfama da sua vida, sem a perceber.

Um longo ámen

Pode-se encarar "Maradona" como uma colectânea de instantâneos. Alguns dos quais raramente vistos, como os filmes familiares que destapam um pouco o véu sobre o universo pessoal de Maradona, brincando com as filhas, ainda pequenas, às cavalitas. Tempos em que Diego já trazia às costas o peso do seu nome, em que Maradona era o maior do mundo.

Não se fala da vida do actual seleccionador argentino em Barcelona (o seu primeiro clube na Europa) ou Sevilha (o seu último emblema europeu), nem se questiona, para além do uso de drogas, aspectos da sua vida privada como as traições conjugais. Kusturica repesca imagens de Maradona deformado devido aos tratamentos antidependências e chega a admitir que todo o seu trabalho esteve em risco devido ao colapso do jogador. Certo dia perguntou à mulher de Maradona, Cláudia, como é que ele sobreviveu a isso tudo. A resposta de Cláudia é mais interessante: "Porque é que ninguém pergunta como é que eu sobrevivi?" Perante isto, Kusturica conclui que não percebe nada de mulheres. Um olho crítico concluiria que não estava a fazer bem o seu trabalho.

No fundo, "Maradona" é uma ode que só não se limita a rezar a versão adulterada do Pai-Nosso criada pelos fiéis da Igreja Maradoniana porque isso não chegaria para fazer um filme de 90 minutos. Kusturica oferece um palco a Diego onde este ataca as estruturas de futebol (Havelange, antigo presidente da Federação Internacional de Futebol, "era um negociador de armas", enquanto Blatter, presidente actual, "vende as balas"), mas não o questiona sobre como conviveu com a máfia napolitana. O filme é uma sequência de deferências, um longo ámen.
Emir sustenta que Jorge Luís Borges não contou com Maradona quando um dia disse que os argentinos lhe faziam lembrar barcos amarrados num porto. Para Kusturica, Maradona foi (ou é) um barco sem amarras. Comparando esta obra ao filme biográfico "La Mano de Dios", um "biopic" apresentado pelo italiano Marco Risi em Cannes, em 2006, ou à sua autobiografia editada em livro, dir-se-ia que a âncora deste "Maradona" é um Kusturica (um pouco) à deriva.

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