O professor de natação, o imigrante clandestino e a piscina

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O que fazem um professor de natação e um imigrante clandestino em Calais, Norte de França? Um prepara-se para atravessar a Mancha a nado. O outro leva uma lição de vida. Melodrama com a realidade a colar-se à pele do filme

Calais, Norte de França, na semana passada: um acampamento de imigrantes ilegais, na sua maioria afegãos, foi desmantelado por forças policiais e "bulldozers", quase 300 pessoas detidas, metade das quais menores - o PÚBLICO noticiou. Viviam escondidas, durante o dia, num bosque nos arredores da cidade portuária. À noite, como fantasmas, espreitavam os camiões em busca de uma aberta, através do canal da Mancha, para chegarem ao Reino Unido. Viviam, então, naquilo que é conhecido como "a selva" - um acampamento precário, sem hierarquia, sem lei, como outros que apareceram após o encerramento, em 2002, de um centro de acolhimento de imigrantes ilegais gerido pela Cruz Vermelha em Sangatte, próximo de Calais (o governo francês foi pressionado pelo governo britânico a fazê-lo, para terminar com um chamariz para os imigrantes ilegais que querem chegar às terras de Sua Majestade).Os imigrantes ainda empunharam as suas bandeiras: "A selva é a nossa casa. Pf [por favor] não a destruam. Se o fizerem, para onde havemos de ir?".
Para a oposição ao governo francês o desmantelamento é apenas operação de cosmética que não resolve o verdadeiro problema nem enfrenta a questão. Mas os governos de França e de Inglaterra congratularam-se, apoiando a decisão "firme" do ministro da Imigração francês Eric Besson. E é aí que Philippe Loiret, um ex-"designer" de som que passou à realização, 54 anos, nos completa e se indigna: "Ministro da Imigração, da Integração e da Identidade Nacional... É-me insuportável essa designação, o que é isso da Identidade Nacional?"
E explicita os fantasmas: nessa política "repressiva" dos imigrantes ilegais e na legislação penal que contempla pena de prisão para quem ajude um clandestino, Lioret vê um lastro comum com a forma de actuação da "polícia francesa durante a Ocupação". "É, antes de tudo, um incitamento à delação", atira. Declarações destas já tinham estado na origem de uma polémica com o ministro, há seis meses, quando "Welcome" chegou às salas francesas. É esse filme, história de um jovem iraquiano que quer atravessar a Mancha para se juntar à sua noiva que vive com a família em Inglaterra, que chega agora a Portugal.
"É a actualidade que acompanha o filme, que se pega a ele. Não fiz um filme com intuito político. Mas é certo que não há coincidências [entre aquilo que o filme conta e a realidade]", diz Lioret, que descobriu "o que se está a passar na Europa" num microcosmos, num ponto de concentração, Calais. "Os imigrantes continuam a chegar, a polícia continua a persegui-los, as rusgas policiais continuam a acontecer. Mas o que aconteceu [na semana passada] é uma entre outras, Os imigrantes voltarão a Calais, tudo continuará como sempre".
Não fez um filme com intuito político e não faz também um documentário, sublinha. "Uma parte do filme pode parecer um documentário, mas é tudo reconstituição, tudo foi feito por nós. É um filme relativamente caro, porque tivemos que reconstituir tudo, Acredito na ficção, as personagens são mais importantes para mim do que a história. Fui a Calais à procura de personagens. Encontrei pessoas que me levaram a construir a personagem do jovem, Bilal, até dos polícias e de Simon".
O par
É o par central de "Welcome": Simon, um professor de natação (Vincent Lindon), e Bilal (Firat Ayverdi), um jovem iraquiano que piorou a sua situação de clandestino em Calais, isto é, isolou-se ainda mais, ao estragar involuntariamente a fuga do seu grupo - a sua respiração denunciou presença humana num camião. Bilal quer agora ter aulas de natação. Para se preparar para o seu objectivo, chegar a Inglaterra onde vive a noiva. E chegar a nado...
O que une Simon a Bilal - melhor, o que atrai o quarentão Simon para o adolescente Bilal - é algo de misterioso. Claro, lá está a parte de "Welcome" em que se percebe que o casamento de Simon acabou mas este tenta tudo para ainda conseguir impressionar a ex-mulher: mostrar-lhe, por exemplo, que se preocupa com os outros, que tem consciência - há um significativo diálogo entre o ex-casal, em que ela critica o alheamento dele, por passar por cima do que a História ensinou. Mas os silêncios da personagem interpretada por Vincent Lindon, a sombra de nostalgia que passa nos seus olhos cansados (foi um ex-nadador, ex-campeão), e a obsessão de Bilal enchem essa parte do melodrama de uma tristeza mais indefinível. O filme aí aguenta-se numa tensão que não esmorece. É a parte mais obsessiva de "Welcome", e chegamos a dizer a Lioret que devia ser mais monomaníaco ainda, não perder energias nem com a situação conjugal de Simon nem com as cenas em Inglaterra com a família da noiva de Bilal. Lioret não gostou da sugestão, está-se a ver. "É um filme que fala da vida, não é a história que me interessa, são as personagens. São as personagems que me guiam. O meu filme é como a vida, faz-se de relações múltiplas. Não tenho a impressão que o filme se perca".
A crispação esmorece quando lhe dizemos que Lindon, actor com quem ele criou uma relação de amizade ("tornámo-nos próximos, falamos praticamente todos os dias, temos projectos comuns"), nos lembrou o sonambulismo de Robert Mitchum. Dito de outra forma, e não perdendo tempo com o individual: que tal como os actores do cinema americano clássico Lindon não precisa de muito para mostrar a quantidade de sentimentos - tomada de consciência social e política, sim, mas também olhar para um adolescente e rever a sua própria juventude - que tomaram conta dele. "Fico contente, vou dizer isso a Vincent, que também vai ficar contente. Vincent tinha a idade ideal para compreender o essencial das coisas. Tem algo de muito terreno. Quanto aos silêncios... na verdade o filme tem muitos diálogos, mas não são explicativos. Na TV é que se explica tudo. O encontro entre as duas personagens [o professor de natação e o clandestino] tinha de ser mesmo um encontro. A partir do momento em que Simon vê Bilal, ele deixa de ser uma abstracção. Os imigrantes ilegais estão nos jornais, vêmo-los na televisão, mas não os vemos. Bilal, personagem com uma energia incrível, dá uma lição de vida a Simon".

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