Os filmes de 2009

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Jorge Mourinha, Luís Miguel Oliveira, Mário Jorge Torres e Vasco Câmara

"Milk", de Gus Van Sant

A Castro Street de São Francisco pode ser uma rua daqueles filmes que Hollywood inventou no passado para serem exaltadas as qualidades americanas. "Milk" ou uma história da História gay filmada como num género da Hollywood tradicional. Podemos dizer,  aliás, do razoavelmente burlesco Milk/Sean Penn: Mr Milk goes to Castro, isto é, à Câmara de São Francisco, como Capra pôs James Stewart, Mr. Smith, a ir a Washington, isto é, a pedir a palavra.  Essa forma de passar da história individual à história de muitas pessoas gay e, um passo em frente, à história de todas as pessoas, gay ou não, e da rua ao país (e da América a todos nós), faz "Milk" vibrar como uma epopeia humana. V.C.

"Gran Torino", de Clint Eastwood

A súmula das idiossincrasias e ambiguidades que a "persona" de Eastwood explorou ao longo de décadas. Objectivamente testamentário, a questão do legado - do "legado americano", das "bandeiras dos nossos pais" - é nele fundamental. Trata-se de descobrir quem são os herdeiros, e no mesmo passo reinventar a América como ideia, como bela ideia. Sublime. L.M.O.

"Ne Change Rien", de Pedro Costa

"Ne Change Rien" muda tudo no cinema de Costa, dentro da mais absoluta coerência: Jeanne Balibar, actriz-cantora em estado de graça, ensaia Offenbach e vampiriza o passado fílmico para fazer avançar as formas e estilhaçar as "citações" (im)possíveis. De certo modo voltando às sombras de "O Sangue", o cineasta questiona tudo e afirma-se como um dos lugares incontornáveis da modernidade cinematográfica, em perpétuo retorno e em irredutível perfeição. M.J.T.

"Sacanas sem Lei", de Quentin Tarantino

Exercício de "história alternativa": o III Reich dizimado por uma parte substancial do seu veneno, a propaganda cinematográfica. Prodigiosa complexidade na caracterização do maniqueísmo, e nos termos em que se joga a prática da tortura física e psicológica. Uma dramaturgia que se resolve nos pormenores linguístico-cinéfilos, um filme de acção que faz da palavra a acção propriamente dita. Podiam-se escrever páginas sobre cada plano de "Sacanas sem Lei" - convenhamos: não anda fácil encontrar filmes que justifiquem esse trabalho. L.M.O.

"A Mulher sem Cabeça", de Lucrecia Martel

Uma mulher vai ao volante, distrai-se, impacto, passou por cima, foi um homem, foi um animal? Recompõe-se, mas a cabeça perdeu-se. É como o espectador de um filme que já não entende. Essa é uma forma de descrever "A Mulher sem Cabeça", mas o melhor foi experimentar "A Mulher sem Cabeça", de Lucrecia Martel. O ocaso burguês e os insondáveis labirintos da percepção. Experiência radical e silenciosa - e continuamos a experimentar "A Mulher sem Cabeça". V.C.

"Um Profeta", de Jacques Audiard

De tanto bater, perante "Um Profeta" (o último grande filme de 2009 - estreia na próxima semana), o nosso coração quase parou. Um "tour de force" de Jacques Audiard, que pega no velho "filme de prisão" como se revelasse um mundo novo. É o épico trabalho de (re)construção de um prisioneiro, árabe, iletrado, que navega entre os poderes instituídos na prisão, até afirmar a sua identidade: o protótipo de uma nova ordem criminosa. V.C.

Ex-aequo:

"Estado de Guerra", de Kathryn Bigelow

Foi o único filme da vaga americana sobre o Iraque a registar com a crítica e o público - porque não é sobre o Iraque, é sobre a guerra e o modo como vivê-la muda quem a vive ao ponto de se tornar numa droga. Trip impressionista, faz dos seus paradoxos a sua própria alma - como convém a um filme que explica que há quem só no meio do perigo se sinta bem. Como a sua realizadora. J. M.

"Os Limites do Controlo", de Jim Jarmusch

O thriller cerebral de Jarmusch conseguiu virar contra si até muitos dos ferrenhos do cineasta. Rigorosamente formalista e diletantemente displicente, meta-referencial e burlesco, é um haiku obscuro e oblíquo cujos segredos só se revelam sensorialmente. Alienígena? Sim, claro. Fazem falta mais como ele. J. M.

"Star Trek", de J J Abrams

Foi o grande, o mais extraordinário "blockbuster" hollywoodiano de 2009: grande cinema popular com um lado de "serial" clássico e um corpo de "space opera" pura e dura que faz da reciclagem e da derivação a sua alma, síntese da memória do entretenimento clássico hollywoodiano projectado para o futuro com uma noção precisa do que significa fazer uma "space opera" quando o futuro já chegou. J. M.

Ex-aequo:

"Duplo Amor", de James Gray
"Inimigos Públicos", de Michael Mann
"Afterschool", de Antonio Campos

James Gray filmou um melodrama da indecisão amorosa que é também, no cenário realista das comunidades imigrantes de Brighton Beach, um melodrama da aceitação do mundo possível. Antonio Campos mostrou-se com "Depois das Aulas", filmando uma escola como um espaço isolado e securitário, através de um adolescente fascinado com a sua câmarazinha vídeo. E Michael Mann pegou na sua câmarazinha vídeo para filmar a saga de John Dillinger, e mostrar que a mise-en-scène na era do digital pode continuar a ser uma questão de coreografia, de bailado, de relação com as formas e proporções. L.M.O.

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