Era uma vez na América

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Cinco filmes de James Gray, em retrospectiva no Lisbon & Estoril Film Festival, um dos cineastas de culto mais fervorosos da sua geração.

Todas as cinco longas-metragens realizadas por James Gray: eis uma das principais propostas “retrospectivas” do Lisbon & Estoril Film Festival deste ano, e muito francamente uma proposta que não se pode recusar. Tanto mais que inclui, com a presença do realizador, as primeiras apresentações em Portugal do seu último filme, The Immigrant, revelado em Maio passado no Festival de Cannes, e que se deseja que depois não demore muito a chegar às salas comerciais do nosso país.

Gray, nova-iorquino de Queens nascido em 1969, é um dos mais fervorosamente cultivados cineastas americanos da sua geração. Talvez só Wes Anderson, também nativo de 1969, suscite, embora num registo diferente, um fervor cinéfilo aproximável – mas num caso, como noutro igualmente “oposição”, não se trata, em nenhum deles, de cineastas “consensuais”.

Apenas, e focamo-nos agora apenas em Gray, um cineasta cujo amor que suscita entre os admiradores dos seus filmes tende a ser intenso e exacerbado. E “trans-geracional”: entre os seus defensores contam-se miúdos, representantes de uma “jovem cinefilia”, mas também cinéfilos da velha guarda. Foi, por exemplo, uma das últimas paixões de Claude Chabrol, que nas últimas entrevistas que deu se referia invariavelmente aos filmes de Gray como a principal descoberta que tinha feito em tempos recentes.

A atenção de Chabrol reflecte um facto com imensos precedentes: a estima crítica europeia, e particularmente com origem em França, a contribuir de maneira decisiva para a imposição de um cineasta americano nos circuitos cinéfilos internacionais. Não é dizer que na América não se reconheça Gray, que também no seu país natal conta com sobejos admiradores; é apenas dizer que os mais expressivos sinais de uma admiração pelos seus filmes vêm essencialmente da Europa. O primeiro livro inteiramente dedicado a Gray foi publicado em França, há cerca de dois anos, pela Synecdoche. E aí se encontrava um prefácio assinado por Jean Douchet, decano da crítica francesa, veterano dos velhos Cahiers du Cinéma das míticas décadas de 1950 e 1960, bem como um texto de Francis Ford Coppola, decano da geração de cineastas cinéfilos da também mítica Hollywood de 1960 e 1970. Douchet (como antes Chabrol) e Coppola unidos na admiração por Gray: isto equivale à bênção daquelas que são, muito provavelmente, as duas principais “famílias” cinéfilas.

A família imigrante

Não falamos de famílias por acaso. A família, a família de origem imigrante, perdida (ou achada) na tensão entre as raízes estrangeiras e “o estilo de vida americano”, são um dos temas centrais dos filmes de James Gray. O seu último filme, que “rouba” com relativa coragem o título de um dos mais célebres filmes de Chaplin, será apenas a primeira vez em que esse tema é imediatamente sublinhado. Mas também investigado com um recuo histórico significativo, apanhando as vagas de imigração europeia para os Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX. Mesmo sem termos visto ainda o filme, não custa adivinhar que as personagens de The Immigrant serão de algum modo os antepassados das personagens dos outros filmes de Gray, todos ambientados na época contemporânea ou com ligeiro recuo temporal (caso essencialmente de Nós Controlamos a Noite, que se passa no final dos anos 1980).

São também, de certa maneira, os antepassados do próprio Gray, cujos avós vieram da Rússia (ou mais propriamente da Ucrânia) para a América nos anos 1930. A origem familiar é um dos motores do cinema de Gray, numa perspectiva que ele define como “pessoal” (quer dizer, algo que lhe diz pessoalmente respeito) mais do que como “autobiográfico” (quer dizer que não é forçosamente a sua própria família e a sua própria história que ele filma, embora em The Immigrant tenha incluído, segundo contou numa entrevista, uma fotografia dos seus avós, eles mesmos).

Estas famílias, Gray filma-as com um minucioso realismo “cultural”. Está interessado em mostrar a persistência destas “bolsas”, de identidade cultural muito marcada, mas no entanto plenamente integradas na vida americana – é um pouco isto o “american dream”, segundo Gray: a possibilidade de alguém se tornar “americano” continuando, no entanto, a ser “russo”. Os seus filmes, lidando com temáticas “mafiosas”, sempre modelos narrativos propícios à reflexão sobre uma ideia de “família”, ou esquecendo-as (como antes de The Immigrant foi sobretudo o caso de Duplo Amor, um melodrama sem sombra de crimes ou máfias), têm sempre esta observação em fundo. Na narrativa como nos detalhes – nunca será demais chamar a atenção para a maneira como Gray trata os “decores” dos seus filmes, sobretudo as casas das suas personagens, cheias de “memorabilia” que imediatamente se constitui como uma espécie de “museu” a fazer a ponte entre uma origem cultura exógena e a integração na cultura americana.

Ao mesmo tempo, o centro dramático de todos ou quase todos os filmes de Gray, de Little Odessa (com que se estreou em 1994, e aos 25 anos conquistou um prémio no Festival de Veneza) a Duplo Amor, encontra-se no poder “magnético” da família, na sua por vezes opressiva capacidade de atracção. Tanto Nós Controlamos a Noite como Duplo Amor são como que variações sobre a bíblica história do filho pródigo, sobre o retorno ao “bom caminho” (quer dizer, à família e às origens) de uma personagem, sempre um “filho”, com tendência para se “tresmalhar”. Sobre esta constante repetição, disse-nos Gray em entrevista de há poucos anos: “Não tenho problema nenhum em repetir os temas que me interessam; pelo contrário, eu quero repetir os temas que me interessam”.

Falta dizer o mais importante: que Gray é um cineasta maravilhoso. Com uma certa pressa, tem existido a tendência para o catalogar como “neo-clássico”, de o filiar em alguém como Coppola, sobretudo o Coppola do Padrinho. Filiação que não é incorrecta, mas peca por escassa: na sua relação com a América, na sua relação com as “parábolas”, dizer que Gray deve algo muito directamente a John Ford não é exagero. Mas não é forçosamente um “neo-clássico” – assim como Clint Eastwood não o é; antes um praticante, e um representante, de uma forma de modernidade intrínseca ao cinema americano (e ao cinema americano interessado em trabalhar dentro de modelos tradicionais de produção e de narração) para a qual, por alguma razão, nunca se encontrou um nome preciso. E portanto a fórmula vaga empregue por Douchet no livro que citámos parece-nos perfeitamente justa: “muitos chamam ‘clássico’ ao seu estilo, mas eu penso que se trata precisamente do contrário”.

É ver, por exemplo, a maneira como a cor, nos filmes de Gray, é trabalhada como elemento dramatúrgico, medida subtil de temperaturas emocionais, instrumento de um sentido fabuloso de “progressão” narrativa. Tem tanto de “clássico” como tem do seu “contrário”, para usar a fórmula de Douchet. O “contrário” do “clássico” não é necessariamente o “moderno”, daí o pudor de Douchet em dar-lhe um nome preciso. Ensaiemos, portanto: o classicismo pode ser uma forma de modernidade, tanto quanto a modernidade uma forma de classicismo. A obra de James Gray mostra-o exemplarmente, maravilhosamente.

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