Livro de falsas memórias de Herman Rosenblat cancelado

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Grupo Penguin não vai publicar "The Angel at the Fence", um livro de Herman Rosenblat

A vida real de Herman Rosenblat era tão extraordinária que já tinha dado um prémio (melhor história de amor num concurso de São Valentim de um jornal norte-americano), estava a dar um livro ("The Angel at the Fence: The True Story of a Love that Survived", edição Berkley Books, uma unidade do grupo Penguin) e ia dar um filme. Já não vai: algumas das memórias que Herman Rosenblat tem do Holocausto são verdadeiras, mas não todas, e desta vez a editora desmontou a história a tempo de mandar parar as rotativas (mas não a tempo de evitar que Oprah Winfrey convidasse o autor para se sentar no seu sofá com vista para milhões de televisores em todo o mundo e anunciasse, coming next, "a melhor história de amor" em 22 anos de programa).

Afinal, a vida real de Herman Rosenblat era mentira.

Alguém devia ter desconfiado - mas ninguém desconfiou, até Kenneth Waltzer, o director do programa de estudos judaicos da Universidade do Michigan, ter dito à New Republic que a história era demasiado boa para ser verdade. De facto, Rosenblat sobreviveu a um campo de concentração nazi, mas não foi graças a uma miúda que lhe atirava maçãs e pão por cima da vedação de arame farpado e que 12 anos mais tarde ele reencontrou num blind date em Coney Island, nos EUA.

Na vida real, exactamente como no livro, Herman Rosenblat e Roma Radzicki foram felizes para sempre, mas (e aqui as coisas já não se passam exactamente como no livro) a história começa em Coney Island, e não em Schlieben, um pequeno campo de concentração de que Roma, a mulher de Rosenblat, nunca sequer se aproximou.

A América pode já não ter um livro com que se entreter, mas continua a ter uma história: a de um sobrevivente do Holocausto que, aos 79 anos, decidiu inventar uma vida maior do que a vida. "Queria fazer as pessoas felizes. A história era inspiradora, e deu esperança a muita gente. Só queria fazer o bem", explicou Rosenblat, por escrito. Agora, noticia a Reuters, tanto o autor como a agente, Andrea Hurst, que continua incrédula ("Interrogo-me por que é que nunca questionei o livro. Acreditei. Era uma história incrível, cheia de esperança", disse), vão ter de devolver todo o dinheiro que já tinham feito com o livro mesmo antes de ele ser publicado (chegaria às livrarias em Fevereiro).

Encontro em Coney Island

Nem tudo o que Herman Rosenblat escreveu é questionável - a história dele continua a ser a extraordinária história de um rapaz que sobreviveu ao Holocausto, apesar de a mulher com quem se casou (e cuja família de facto fingiu ser cristã para escapar aos campos de concentração da Alemanha nazi) não ter tido nada a ver com isso. A quinta da família Radzicki ficava perto de Breslau, a mais de 300 quilómetros do campo para onde Rosenblat foi deportado, e os dois, admite agora o autor das memórias, nunca se tinham visto, nem sequer através de uma vedação, quando se encontraram pela primeira vez em Coney Island.

Até à década de 90, a verdade foi suficiente para Rosenblat; em 1996, passou a ter uma vida imaginária que o levou duas vezes à televisão. Da primeira vez não aconteceu nada. Da segunda caíram-lhe três contratos em cima. Era o tipo de destino para que ele, um técnico de reparação de televisores, não estava suficientemente preparado: a história não resistiu à investigação de Kenneth Waltzer, que estudou a planta do campo de Schlieben (um anexo de Buchenwald) e concluiu que teria sido absolutamente impossível, quer para um prisioneiro do lado de dentro, quer para um civil do lado de fora, aproximar-se da vedação. "A história é inventada. Tanto quanto posso avaliar, nunca aconteceu", declarou.

Vai acontecer agora, no cinema. Harris Solomon, que tinha planeado adaptar as memórias de Rosenblat, não desistiu do projecto - limitou-se a tirar a frase "baseado em acontecimentos reais" e a sugerir ao autor que doasse as receitas da venda dos direitos a organizações de apoio a sobreviventes do Holocausto.

Como livro, é provável que fique por aqui: a indústria livreira está demasiado escaldada com os sucessivos remakes do caso James Frey (o autor do bestseller A Million Little Pieces admitiu, tarde de mais, que vários episódios da sua suposta história de toxicodependência foram inventados) descobertos este ano. Pelas nossas contas, este é o terceiro: houve o caso Misha Defonseca, a falsa judia belga que admitiu que a sua infância passada na companhia dos lobos, para escapar à perseguição nazi, foi inventada, e houve o caso Margaret B. Jones, cujo Love and Consequences (a autobiografia de uma traficante de drogas adolescente num bairro difícil de Los Angeles) chegou a vender 19 mil cópias antes de ser apagado do mercado - e de passar a nunca ter existido, como a vida imaginária de Herman Rosenblat.

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