Deixem-me contar-vos do absurdo

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Um dos melhores prosadores da América. A crítica, os prémios, a consistência dos livros colocam-no entre nomes como o de Philip Roth, John Irving ou Cormac McCarthy James Leynse

Canadá é o título do mais recente romance de Richard Ford, o exímio observador, que transportou para a escrita o que retirou da forma lenta com que aprendeu a ler. A culpa de lermos Richard Ford é da sua dislexia. É o que ele diz numa conversa sobre inconformismo e o que há de risível na certeza da verdade.

Conversa de surdos para começar e logo a gargalhada a quebrar a distância. Richard Ford, 70 anos, é um dos melhores prosadores da América. A crítica, os prémios, a consistência dos livros colocam-no entre nomes como o de Philip Roth, John Irving ou Cormac McCarthy. Esta apresentação seria dispensável se ele fosse tão celebrado ou reconhecido quanto aqueles dois autores. Talvez isso se explique pela pose. “Fico muito feliz por estar a ser traduzido em português”, diz, antes de tudo e depois de conseguir ouvir uma voz que dizia que não lhe chegava. A partir de Nova Iorque e até Lisboa, dois anos depois do sucesso de Canadá, Ford pergunta antes de mais o nome do tradutor. Quer saber dele. De Francisco Agarez. Fica a saber que é tradutor de Philip Roth e de Jeffrey Eugenides. “A tradução é uma espécie maravilhosa de ficção.” Faz uma pausa a testar reacção. “O tradutor tem de imaginar o livro noutra cultura. Traduzir é um acto de imaginação.” E o que pode o autor em relação a isso? “Nada. Tenho de confiar. Mas às vezes... Ó meu Deus... Falo bem francês e espanhol e há escolhas que me chocam. O facto é que eu e a minha escrita significamos coisas diferentes em francês ou em espanhol.”

E ele é um americano nem sempre confortável nessa pele. Costuma falar desse “peso”. De uma identidade de que tenta fugir enquanto determinismo de origem. Isso vem nos seus livros. Na vida, diz também que não tem feito outra coisa. Nasceu no Sul, em Jackson, Mississipi, mas afirma que isso aconteceu-lhe. Filho de um caixeiro-viajante e de uma dona de casa, ficou sem o pai aos 16 anos. Tem contado a violência dessa morte, provocada por um ataque cardíaco. Nesse dia Richard Ford estava em casa com a mãe. Não conseguiram salvá-lo e Richard foi viver com os avós para o Arkansas. Estudou hotelaria, serviu nos Marines, mas uma hepatite impediu-o de continuar. Sempre meio nómada na América, refugiou-se no Inglês. Tinha sido um leitor atento, mas lento, por causa de uma dislexia. “Não me pergunta sobre disso?” Tem algo mais para acrescentar? “Acho que não.” Confessou muitas vezes que acha que foi isso que o fez escritor. Ele sabe de todos os sentidos que uma palavra pode ter, dependendo de quem a diz e onde e em que circunstâncias.

A forma lenta com que leu fê-lo atentar nos detalhes, ritmos e quis que a sua escrita reflectisse essa respiração humana que escutou em William Faulkner ou Flannery O’Conner, escritores que, como ele, nasceram no Sul e que sempre tem apresentado como referência. Quem o lê, não encontra paralelismo imediato, talvez porque Richard Ford soube construir um canto só dele e entre os que cuidam da palavra para que tudo pareça muito simples. Nisso, é cirúrgico. “Tento escrever sobre coisas muito elementares, que são talvez as mais complexas da vida. Quero perceber como é que essa complexidade se diz.” Para isso, não precisa de mistérios alternativos. Ou seja, há mistério suficiente neste Richard Ford.

“Contarei em primeiro lugar a história do assalto à mão armada que os nossos pais cometeram. Depois a dos homicídios, que aconteceram mais tarde.” Depois de um início de livro como este, como é que se gerem as palavras para manter o mesmo nível de alerta no leitor ao longo de 400 páginas?
(Gargalhada) Ui... Com muito cuidado. Depois de um começo forte, é preciso continuar de modo igualmente forte sem cansar. Levou-me um mês a escrever esse primeiro parágrafo. E grande parte desse mês foi a pensar no efeito que cada uma das palavras escolhidas pudesse ter no parágrafo seguinte e por aí adiante. Esse início tinha de ser bem continuado ou não valeria nada. Não há coisa pior para o leitor do que sentir um decrescendo. Tenho de ter bem a noção da capacidade de sedução do que se segue, do encadeamento. As cenas seguintes têm de ser tão substanciais e sedutoras quanto a inicial. Não sei qual é a fórmula. Tento encontrá-la em cada frase.

A ideia para este romance nasceu-lhe há mais de 20 anos.
Sim, estava então a viver numa pequena cidade no Montana.

Como Great Falls, a cidade da primeira parte de Canadá?
Não era longe, a umas 40 milhas. Tinha terminado um livro e queria começar qualquer coisa. Estava à espera. Passaram duas semanas, três e não acontecia nada. Então sentei-me numa sala de uma casa que tinha arrendado por ali e disse: “ok, aqui estou eu sem nada para fazer. É melhor ir à procura”. Escrevi umas 12 páginas sem saber o que estava escrever. Queria apenas dar alguma utilidade ao meu tempo. Escrevi mais umas quantas e então o outro livro de que eu estava à espera chegou. Nessa altura pus aquilo de lado e não lhe voltei a pegar seriamente senão 20 anos depois. Parar e repegar é normal. Escrevi outros livros, li outros livros, fiz a minha vida. Eu estava à espera mas não estava inanimado.

Li isto seu: “Um escritor é alguém com nada para fazer que encontra alguma coisa para fazer”. Isso é a sua definição de um criminoso, no caso, Bev, o pai do protagonista deste livro, que depois de desempregado decide assaltar um banco e acabar com a sua normalidade e a da família.
(Risos) Nunca me tinham obrigado a pensar nisso. Mas parece-me que sim. Não acho que seja mesmo nada diferente. Falei com especialistas em Psicologia Criminal e eles referiam essa espécie de “nada para fazer” que de repente muda tudo. Mas o criminoso, o tipo que vai roubar um banco, tem outro género de motivação. Normalmente há uma situação complicada da qual pensa só conseguir sair se assaltar o banco. E não lhe ocorre o óbvio: que será apanhado. A maior parte das pessoas que rouba bancos poderia fazer qualquer outra coisa se estivesse para isso. Talvez o mesmo aconteça com os romancistas; muitos deles poderiam fazer outra coisa qualquer se estivessem para aí virados. Mas a maior parte não o faz.

Ocorreu-lhe fazer outra coisa?
Ahahah...

Este livro constrói-se à volta do conceito de normalidade e de como essa normalidade pode, de forma repentina, ser abalada. Dell, o narrador, desabafa: “Confesso como o comportamento normal pode existir paredes meias com o seu oposto”. E sublinha: “Quase todos os sinais, os alertas de desastre que conhecemos, estão errados”. Temos pessoas normais que passaram a fronteira. O que lhe interessou na palavra “normal”?
É uma palavra que as personagens usam para tentar exercitar o domínio que têm sobre as suas vidas. Elas estão a viver um processo de saída dessa normalidade e a criar um vocabulário para isso. E dizem: “Eu estou bem, não sou assim tão diferente, não tenho de ser alvo de ajuda, e se tenho, bom... então talvez possa perder a minha vida. Ou talvez ainda tenha de arranjar uma vida para mim”. É quando se está desta forma tão emocionalmente isolado que nos afastamos do amor e da atenção das outras pessoas. Muito desse sentimento ou dessa sensação tem a ver com a palavra que escolhemos para nos descrevermos a nós mesmos.

Nessa atitude de cada um se achar absolutamente normal existe alguma arrogância?
Arrogância num sentido mais genérico. No sentido em que nos arrogamos normais em função da nossa utilidade. Há muita coisa na América que sei que muitos de vocês, europeus, já não suportam. Eu também já não suporto. Tem a ver com a ideia americana de que a América é excepcional. E essa excepcionalidade não é diferente da portuguesa, ou dos franceses... Bem, talvez esteja errado em relação aos franceses, eles são excepcionais de uma maneira que não entendo. O facto é que somos todos excepcionais nos nossos eus mais privados. Devíamos estar um pouco mais atentos à excepcionalidade dos outros para ter mais consciência da nossa. Talvez fôssemos mais felizes. Na nossa solidão, achamo-nos sempre excepcionalmente normais…

Numa entrevista disse: “Toda a gente é normal até certo ponto”
Penso no livro e num desespero e na falta de sentido na vida. O desespero está nesse limite. Não sei se posso generalizar. As pessoas acham que passaram para lá da normalidade quando atingem os limites da imaginação. Muitas vezes chega-se a esse limite por coisas tão simples ou complexas como estar-se apaixonado ou doente ou numa situação moralmente constrangedora. Situações de vida em que a lucidez esteja em causa. Dostoievski escrevia sobre pessoas moralmente doentes. Há muitos livros sobre isso e sobre o modo como pessoas sentem que têm domínio sobre essa normalidade. O curioso é que por vezes só se consegue sentir esse domínio quando se convoca a imaginação. As histórias tornam-se úteis para os leitores quando eles sentem que os livros e as personagens falam do mesmo que eles. Quando os limites da ficção os atingem como os seus próprios limites possíveis.

Esse é o lado “útil” da literatura?
Sim. Talvez seja. Não no sentido de resolver um problema. Útil no sentido em que se entra num livro como num território estranho e isso nos coloca num certo distanciamento em relação a algo que se vai revelando como nosso. E é esse distanciamento que permite o melhor entendimento do que somos. Podemos encontrar no livro uma inteligência alternativa. Choramos e rimos. O livro pode chegar-nos de muitas maneiras, mas a mais eficaz é através da emoção. O tal inexplicável. É uma utilidade transcendente.

É o que procura enquanto leitor?
Sim, sim.

O pai de Dell é do Sul dos EUA, tal como o Richard. Ele é do Alabama; o Richard é do Mississipi. Ele gosta de interrogar os filhos acerca do lugar de onde se sentem. Este romance também é um confronto com a identidade. Primeiro dentro da América, depois do outro lado da fronteira, a olhar para as possibilidades que essa mudança traz. Sente-se americano?
Sim. Mas ser americano é algo pelo qual não tenho nenhuma responsabilidade. Aconteceu nascer aqui, os meus pais são daqui. Interrogo-me, claro. E a resposta é sempre sim. Sempre me senti feliz por ser americano. Por exemplo, ser americano permite-me ter os meus livros traduzidos em muitas línguas, falar com muita gente, viajar. É diferente de ser alemão, francês. A literatura americana atravessa muito facilmente as fronteiras.

A sua personagem diz que o Canadá é melhor do que a América e toda a gente sabe disso excepto os americanos.
Pois é... Vou ao Canadá e sinto-me diferente, mas as pessoas são semelhantes, continuam a falar inglês. É a atitude. Há uma leveza. O sentido de nação está mais diluído, parece pesar menos. São coisas mínimas, mas sentem-se. Sempre estive muito interessado em saber porque é que gosto tanto do Canadá. Quando escolhi o Canadá para a minha personagem recomeçar a viver foi pela possibilidade. O Canadá estava logo a umas 100 milhas do local onde o romance começa. Não pensei num sentido transformativo. No princípio de um romance pensamos saber muito acerca do espaço onde a acção se vai passar, mas ao avançar percebemos que afinal o que sabíamos era pouco. São tantas as possibilidades da nossa personagem que vamos crescendo no livro, com o livro. Aprende-se escrevendo. No fim sei mais sobre o que sou do que sobre o Canadá. É também o que quero da escrita, perceber alguns dos meus propósitos. É uma relação mais imaginativa, mais subjectiva, um conhecimento que não é palpável. Quero passar uma possibilidade de experiência que tem a ver com a minha própria experiência de escrita.

Fala de geografias que conhece, através de um narrador que é um homem da sua idade, com a experiência de ser filho de um sulista e que se descobriu noutra geografia. Ele passa por uma ruptura aos 15 anos, a idade em que o Richard perdeu o seu pai. Essa experiência tem estado em alguns dos seus livros. Acredita que os escritores estão sempre escrever autobiografia?
Não conscientemente. Acho que se escreve sobre coisas nas quais estamos interessados. Pode ser o sítio de onde somos. É muito redutor para a imaginação ficarmos na autobiografia. Ou melhor, passar a vida inteira a escrever autobiografia é ofensivo para a imaginação. Tornamos o que escrevemos num acidente, o acidente do nosso nascimento. Sempre resisti a isso enquanto adulto; sempre tentei escapar ao cativeiro do nascimento, sempre achei que poderia fazer mais na minha vida do que as coisas que se esperavam do que se chama um homem do Sul. E quando descrevo uma planície ou uma paisagem de montanhas é muito mais um exercício verbal do que de descrição. É escolher as palavras. Se eu quiser mudo a cor do céu.

É verdade que acha que literatura é a única coisa atraente no Mississipi?
Sim. Voltei de lá há dois dias e sempre vou Mississipiano passo o tempo rir.

Porquê?
Porque tudo é muito engraçado, é absurdo. O Mississipi é um sítio absurdo.

Isso pode ser muito estimulante.
É por isso a literatura que lá se faz é tão boa. Tudo é mesmo absurdo. No Mississipi nascemos e crescemos a pensar que a maior parte das pessoas são inferiores a nós. É ridículo. Crescemos com esse profundo absurdo, a pensar que há uma verdade. Essa tremenda ironia é responsável por muita literatura. Há um lado negro a que precisamos de sobreviver. É quando encontramos esse meio que é possível olhar e rir.

Tem sido comparado a Flannery O’Connor e a William Faulkner, dois escritores do Sul que que captaram esse olhar.
São dois escritores fabulosos. Quer melhor encanto saído do Sul dos Estados Unidos?

O agente imobiliário Frank Bascombe tem sido a sua personagem mais emblemática. Está com ele desde 1986 [ano de The Sportsman, primeiro volume da trilogia de que faz parte Dia da Independência]. É verdade que ele vai voltar?
É. Não sabia se conseguiria, mas é certo. Estou escrever outro livro com ele. Sai em Novembro. Vai-se chamar Let me be Frank whith you. Acho que estou a arranjar um problema para os tradutores. O Frank permite-me estar comigo de um modo alternativo, talvez até mais verdadeiro. Dá-me oportunidade de mudar a cada página, de fazer humor. Ele é divertido e escrever humor é muito estimulante. Esta personagem é das coisas de orgulho de ter escrito.

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