O rapper Kendrick Lamar no festival dos alternativos do rock

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Em Portugal ainda rareiam concertos de hip-hop. Mas no Nos Primavera Sound é um dos rappers mais fulgurantes dos últimos anos, o americano Kendrick Lamar, que se destaca na primeira noite, já na quinta-feira

A terceira edição do festival Nos Primavera Sound começa na próxima quinta-feira no Porto com Rodrigo Amarante, Caetano Veloso, Haim ou Sky Ferreira. Mas o nome que provavelmente convoca maiores expectativas é o do americano Kendrick Lamar. Não é muito comum uma das figuras cimeiras do hip-hop americano ser cabeça-de-cartaz de um festival conotado com as linhas mais alternativas da cultura rock, mas é isso que acontecerá. 

Ainda é com alguma timidez que as figuras americanas do hip-hop ou do R&b são recebidas em espectáculos em solo português. Claro que podem ser apontadas excepções nos últimos anos, dos De La Soul a Snoop Dogg, de Kanye West aos dos The Roots, dos Public Enemy a Mos Def, de Beyoncé a Rihanna. Mas sente-se que, ao contrário do que acontece com outros géneros, Portugal ainda não faz parte dos roteiros europeus. Depois de 50 Cent ter enchido o Pavilhão Atlântico há nove anos, pensou-se que estaria finalmente aberta a porta para a realização regular de concertos com figuras de topo do hip-hop, mas não. “O problema é que esses grandes nomes que se movimentam no mercado gigante dos Estados Unidos não estão para actuar em alguns mercados europeus e perder, eventualmente, dinheiro”, reflecte Artur Peixoto, da Everything Is New, uma das principais promotoras de concertos e de grandes festivais em Portugal. 

Os grandes nomes do hip-hop, figuras celebradas no imenso mercado americano, cobrando somas elevadas quando em digressão, não são fáceis de rentabilizar em mercados pequenos. Principalmente, no Sul da Europa. “Os únicos mercados que conseguem dar resposta a essas solicitações, porque têm poder económico e público em número suficiente que consome esses géneros, são os escandinavos, ingleses ou franceses”, continua Peixoto. 

Há uns anos, o número de discos vendidos constituía uma boa medida de aferição da fama de determinado artista. Com a Internet e os hábitos de consumo em mudança, torna-se difícil saber até que ponto figuras como Kendrick Lamar são ou não populares em mercados como o português. A marketing manager da editora Universal, Cláudia Santos, tem consciência disso. “Nomes como os de Lamar, Roots ou Kanye West têm repercussão mediática aqui, mas depois ficam aquém em termos de impacto de consumo, comparando com uma Rihanna ou uma Beyoncé. Ou seja, não vendem tanto, porque os seus consumidores-padrão ouvem-nos de outras maneiras, através da Internet ou em streaming.” 

Não é esse o caso, por exemplo, de Eminem, que nunca veio a Portugal, mas que certamente arrastaria multidões. De resto, não são apenas os países do Sul que têm dificuldade em contratar estes nomes. A grandeza do mercado americano permite-lhes serem auto-suficientes. A Europa é quase sempre uma segunda escolha. “Ele já não tocava há muitos anos em Inglaterra e vai fazê-lo agora, mas no seu caso a não vinda a um grande festival em países como Portugal tem mais a ver com questões de produção ou de dinheiros envolvidos, porque é muito solicitado.”

Aqui, os grandes nomes do hip-hop são encarados como aposta de risco, e a maioria deles acaba por privilegiar outros mercados; ao mesmo tempo, o género tem tido uma visibilidade em Portugal na última década como nunca antes sucedera. Na visão de Artur Peixoto, existe também um problema de identificação: “Em Portugal consome-me muito hip-hop, as pessoas ouvem a música, mas depois não reconhecem os nomes dos artistas, não se familiarizam com eles. Não se estabelece um vínculo. E isso na compra de um bilhete para um concerto é importante.” 

Hoje em dia já se tornou vulgar ver os mais diversos artistas (como, no ano passado, Azelia Banks, no Super Rock Super Bock) apresentarem-se em grandes festivais, apenas com um DJ e uma ou duas cantoras de apoio, mas o formato mais clássico do hip-hop, com um sistema de som, ainda causa desconfiança em que se habitou a ver guitarras e baterias em palco. “É talvez mais fácil as pessoas excitarem-se num espectáculo rock”, reflecte Peixoto, “se bem que os Jurassic 5 tenham sido um sucesso no ano passado, no Alive, num dia em que havia Depeche Mode ou Editors.” 

Ou seja, para tentar perceber a míngua de concertos deste género é possível discernir algumas linhas gerais, mas cada caso tem especificidades. Os promotores necessitam de analisar cada uma das propostas, tendo em conta a realidade do país, a dimensão dos espectáculos ou se existem datas passíveis de serem partilhadas com Espanha, um país que também parece ter uma relação pouco fluída com os grandes concertos de hip-hop. E depois existe a voz dos artistas que, por vezes, também conta. 

De Kanye a Kendrick

É isso que parece ter acontecido com a primeira vez de Kanye West em Portugal, em 2006, quando actuou em Oeiras. Na altura já era uma figura de alcance global, embora ainda em ascensão. Havia países que nunca visitara e nessa digressão optou por fazê-lo, mesmo que em alguns casos as receitas fossem residuais. 

Essa primeira visita de Kanye West tem alguns contornos semelhantes ao contexto que agora envolve Kendrick Lamar. Também este tem notoriedade no mercado americano, embora na Europa — talvez com excepção de França, o maior mercado hip-hop europeu — esteja ainda em ascensão. Já conquistou os melómanos mais atentos, mas falta-lhe o grande público, mesmo sabendo que hoje as audiências estão ainda mais fragmentadas. 

Argumentos não lhe faltam. Faz parte de uma nova estirpe de rappers que é capaz de reflectir as tensões e distensões da realidade hip-hop, fazendo-o com a elasticidade de quem já não perde tempo a reafirmá-la, mas a desconstrui-la e a enriquecê-la. 

Há dois anos, foi capaz de lançar um desses álbuns (Good Kid, m.A.A.d City) que provocam um antes e um depois. Nem mais. Um clássico. Pela forma como encadeia os trejeitos vocais. Pelas letras em que expõe alguma vulnerabilidade, desconstruindo com complexidade a mentalidade marginal dos bairros onde cresceu. E pela sonoridade, que transcende fronteiras e imaginários, numa música rap delicada que consegue fixar nos ritmos rigorosos e nos refrãos emocionantes um certo ambiente geracional. Os temas são densos e tranquilos, espelhando uma grande autenticidade, afastando-se do hedonismo de Drake, do cinismo de Tyler, The Creator ou da autoconsciência exacerbada de Kanye West.

Não é o primeiro rapper a expor fragilidade. Mas quem o fez antes dele, por norma, ficou confinado a públicos minoritários. A diferença é que Kendrick Lamar é liricamente sofisticado, propõe uma sonoridade exploratória, não tem canções que resultem em singles óbvios e mesmo assim consegue o reconhecimento crítico e comercial. 

Kendrick Lamar Duckworth é um contador de histórias. As suas canções são uma espécie de documentário existencial, centrado na vida do rapaz que se deixa tentar pelos perigos da cidade. Nasceu em Compton em 1987, viu um tio ser morto num tiroteio e vários primos irem parar à prisão. Os contornos cinzentos da vida urbana são expostos na sua lírica através de uma fluência vocal camaleónica. Mas também os momentos em que tem dúvidas sobre si próprio e sobre os seus actos são revistos. 

As suas canções mais parecem episódios de um filme, expostos numa lírica emocional e num som de balanço rítmico relaxado e insinuante. Como é que tudo isto vai funcionar na primeira noite no Parque da Cidade do Porto? A menos que ocorra um cataclismo, arriscamos que vai correr muito bem. Vai ser possível constatar que Kendrick Lamar tem público em Portugal, e que é viável ter um espectáculo vibrante com recurso a DJs e MCs. 

Quem sabe se o seu concerto não marcará, finalmente, uma relação mais regular entre o mercado dos concertos em Portugal e os nomes de referência que fazem a história actual do hip-hop?

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