O que é isto, João Nicolau?

Foto

"A Espada e a Rosa", inclassificável primeira longa-metragem de João Nicolau, ?está a concurso no Festival de Veneza. O realizador explica o suficiente para ?percebermos porque é que este filme de utopias, aventuras, solidão e fim de Verão ?faz figura de óvni no cinema português

Mas o que é isto?

Veneza não sabe que não é "isto" que se espera de um filme de autor português?

"Isto" sendo um filme "de aventuras" com piratas anarco-tecnológicos à solta numa caravela chamada Vera Cruz, que é também um filme "musical" com músicos que não cantam, um filme "fantástico" à volta da utopia e da criação, e um filme "de geração" com uma sensibilidade "slacker" e descontraída, nos antípodas da imagem que se faz hoje em dia da cinematografia portuguesa à conta da austeridade de Pedro Costa ou Manoel de Oliveira.

Pelos vistos, não. O Festival de Veneza aceitou "A Espada e a Rosa", primeira longa-metragem de João Nicolau, 35 anos, e colocou-a a concurso, no mesmo patamar de gente como José Luis Guerín ou Paul Morrissey, Guillermo Arriaga ou Vincent Gallo (e até Manoel de Oliveira, cuja curta sobre os Painéis de São Vicente de Fora faz parte da selecção), na secção paralela Orizzonti ("as novas direcções do cinema mundial").

Sem problemas com o facto de, com 2h20 de duração, "A Espada e a Rosa" ser a mais longa escolha da secção este ano, ou de o filme (apesar dos pontos de contacto com os filmes de Miguel Gomes) não se parecer com mais nada que o cinema português tenha feito nos últimos anos.

Questão que, aliás, também não incomoda Nicolau por aí além. "Espero bem que não, nunca houve essa vontade da minha parte", diz-nos ele ao princípio da tarde de um sábado quente num café de Telheiras, bica e copo de água à frente, maço de cigarros e isqueiro a jeito. "Não tenho uma relação tão pensada quer com o meio quer, com o cinema português. Faço filmes, este como os outros que fiz e os que espero fazer a seguir, apenas pela lógica daquilo que me dá gozo. Não gozo de gargalhar, mas gozo de tirar alguma coisa do próprio processo de feitura sem me preocupar muito em que estética ou em que corrente vai ser integrado pelos outros."

Mesmo que exista um certo nível de expectativas por "A Espada e a Rosa" ir a Veneza? "Confesso que estou muito curioso. Há uma alegria enorme, quase ao nível da fascinação, e ao mesmo tempo fico bastante apreensivo, porque sei que apesar de tudo é um filme que pode ser algo duro, pela duração que tem, pela linguagem que utiliza. E nos grandes festivais há muito aquela coisa de supermercado, de as pessoas entrarem, espreitarem, verem meia hora e irem para outra projecção... Mas para o filme é excelente, porque lhe vai permitir ser seleccionado para outros festivais, ser visto por outras pessoas, e pode gerar também alguma curiosidade junto do público português."

Nicolau não é exactamente um novato em festivais: as suas duas curtas, "Rapace" (2006) e "Canção de Amor e Saúde" (2009), foram à Quinzena dos Realizadores em Cannes, pelo que a experiência do grande certame internacional já não lhe cria taquicardia. "Tive a sorte de a minha primeira curta ter sido seleccionada para a Quinzena - eu só queria provar a mim próprio que poderia fazer um filme, e o choque foi tão grande que, mais do que as expectativas, havia já um misto de alegria e fascínio por poder difundir o filme nesses sítios. Mas são coisas que escapam completamente ao criador do filme. E também não se pode atribuir demasiada importância a isso."

O sonho comanda o filme

"A Espada e a Rosa", então. A Espada é o símbolo do Plutex, uma substância primordial capaz de tudo e mais alguma coisa. A Rosa é um pirata reformado e misantropo com mau feitio que se desmultiplica em Michael Biberstein, Luís Miguel Cintra e José Mário Branco.

Há também o Manuel (o músico e cúmplice Manuel Mesquita, que já participava na primeira curta de Nicolau, "Rapace"): vive de biscates, evita o fiscal, tem um gato chamado Maradona (que rouba o filme sempre que entra) e abandona tudo para ir para alto mar com os piratas da caravela. Há canções, aventuras, piadas privadas, raptos, empregadas brasileiras, francesas petulantes, traições, cinema mudo, engenhocas e alemães com helicópteros.

Nas palavras de um dos três Rosas no final do filme, "sonho, amor, arte, ciência, literatura, música, tecnologia, café e rum".

"Holy Santa Maria fuck!", diz alguém a certa altura, e dizemos nós.

O que é isto, João Nicolau?

"É um filme de utopias, que trabalha e relativiza essa ideia, e é um filme de aventuras que passam muito pela sociedade que se propõe."

Ou ainda: " É um filme de fim de Verão, porque essa ideia do fim do Verão ser o fim do mundo, como diz a certa altura uma personagem, resume um pouco o espírito do filme."

Ou também: "É um pouco sobre a tensão entre acomodarmo-nos ou não, entre compreender que existe um individualismo irremediável mesmo quando gostamos de estar em sociedade."

Ou, mais pragmaticamente: "Construí-o, quase entre aspas, como um épico - o argumento era muito maior, a rodagem também (a primeira versão tinha três horas) e mais não pôde ser porque um filme vive também dos constrangimentos práticos que o afectam."

Para quem vê, é um filme cinéfilo (cita os filmes de piratas, os filmes musicais, a ficção científica clássica). "Talvez porque sou um bocadinho mais inocente e ainda acredito numa coisa mais clássica", explica João Nicolau. Mas entre uma olhadela ao jogo do Chelsea no televisor do café e mais um cigarro, João Nicolau avança que isso é mais "questão de gosto propriamente do que de frequência": "Não sou cinéfilo, nunca fiz a escola de cinema, nunca sonhei fazer filmes - estudei Antropologia, fiz o mestrado em Antropologia Visual, convidaram-me a trabalhar em montagem, um dia arrisquei fazer uma curta e agora cheguei a fazer uma longa. Não passei muitas horas da minha juventude a ver filmes e a discuti-los. Há imensos filmes do Howard Hawks que não vi, só há relativamente pouco tempo é que descobri musicais de um dos meus realizadores preferidos, o Vincente Minnelli, como a ‘Gigi' ou ‘0 Pirata dos Meus Sonhos'. Como qualquer pessoa da minha geração, devo ter crescido a ficar fascinado com as coisas do David Lynch e do João César Monteiro, quando há um filme do Otar Iosseliani ou do Aki Kaurismaki gosto de ver, mas isso é mais uma questão de serem os filmes que gosto de ver."

Se "A Espada e a Rosa" é um filme que outras pessoas vão gostar de ver, logo se verá - a passagem na secção Orizzonti é na próxima quarta, dia 8, em sessão aberta ao público; a estreia em sala por cá só muito mais lá para a frente.

João Nicolau já está descansado com uma coisa, no entanto: o seu não é o filme mais longo de Veneza 2010: "À mesma hora passa o filme do Abdellatif Kechiche na competição, que ainda é maior que o meu. Tem 2h40."

Sugerir correcção
Comentar