Jogos de prestidigitação

A auto-representação como possibilidade de descoberta da alteridade dentro de si.

Há cerca de um ano Jorge Molder cessou as funções de director do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, que tinha exercido desde 1993. Durante esse período, não expôs nas instalações desta instituição o seu trabalho de fotografia, que tem vindo a desenvolver com persistência e qualidade. Em 1999 foi o representante de Portugal à Bienal de Veneza, o que atesta o prestígio e a opinião consensual sobre a qualidade da sua obra. Entretanto, e já no início do corrente ano, doou ao Centro de Arte Moderna duas séries suas de fotografias: "O pequeno mundo" (2000) e "Não tem que me contar seja o que for" (2006-2007). São estas duas séries, a que se junta uma terceira, recente, com o mesmo título da exposição - "A interpretação dos sonhos"- que compõem a mostra a decorrer no edifício da sede.

E, se por razões éticas não era possível até agora visitar uma exposição individual deste fotógrafo nas instalações da Fundação, a sua presença neste momento fica plenamente justificada. O conceito central que fundamenta toda a obra deste autor está intimamente ligado à fotografia como medium artístico: a auto-representação como possibilidade de descoberta da alteridade dentro de si. Jorge Molder encena-se a si próprio em situações que convocam uma narrativa subjacente que, afinal, nunca se concretiza. E, nessa representação (entendida aqui esta palavra no seu sentido mais teatral), concretiza permanentemente o próprio paradoxo da vida: é ele próprio, mas sempre mediado por Outrem, que a fotografia revela. E a palavra "revelação" é também aqui, evidentemente, usada com toda a ambiguidade semântica que permite.

E as três séries (como, noutro registo, a excelente exposição "Pinocchio" que pudemos ver há meses no edifício Mundial Fidelidade, em Lisboa) confirmam a capacidade de Molder jogar com a infinita variedade de imagens de si, que acabam sempre por ser as imagens de outro sem nunca deixarem de o representar... nas duas séries mais antigas, há fotografias onde o sujeito-artista se esconde por detrás de um vidro fosco, apenas imprimindo as suas mãos ou o seu perfil em contra-luz: é aqui que o significado deste trabalho se traduz de um modo talvez mais teatral e conciso. Contudo, esta teatralidade, que é acentuada pelos contrastes fortes entre a luz e a sombra (ou, melhor, entre as luzes e as sombras, já que a iluminação é quase sempre multidireccional), está constantemente presente, e sobretudo na caracterização acentuada que o artista imprime à sua própria imagem.

A série que dá o nome à exposição, um conjunto de 21 fotografias em tiragem digital pigmentada, retoma o título da obra de Freud onde se enuncia o método de análise psicanalítica conducente à cura da neurose. Freud, num estilo quase coloquial, define neste livro o processo de construção do sonho e as mecânicas de que o inconsciente se socorre para fabricar a narrativa sonhada. Molder apropria-se do título do livro, mas retira-lhe a possibilidade de se dar a ler como citação ao omitir as maiúsculas. Em vez dessa citação, à maneira do Surrealismo, por exemplo, oferece-nos a literalidade do significado da frase "a interpretação dos sonhos", e um esbater da imagem acentuado pelo trabalho de pós-produção. As fotografias que compõem esta série possuem uma qualidade quase imaterial: com os contrastes entre luz e sombra saturados, esbatem os contornos e transformam a personagem-autor num espectro. O jogo, presente nos acessórios e nos pormenores acentuados nesta ou naquela fotografia, é uma constante em toda a série. Jogo de prestidigitação, adivinhará o visitante cujo olhar é solicitado permanentemente entre o que vê, o que não vê e o que adivinha lá estar, mesmo não vendo. Ou seja, jogo entre aquele que é, e aquele que, embora parecendo não o ser já, ainda o é.

De Lisboa, a exposição seguirá para Paris, também para as instalações da Gulbenkian. Refira-se ainda que foi editado um excelente livro a acompanhar a exposição, com texto contextualizador da comissária, Leonor Nazaré.

Vídeo
Sugerir correcção
Comentar