A multiplicação das formas

Exposição antológica de José Escada.

A história desta exposição começou com um contacto da Fundação Gulbenkian à Galeria 111 a propósito do "catalogue raisonné" de José Escada que aquela instituição prepara. Pretendia-se saber se a Fundação Manuel de Brito, que gere a colecção do antigo galerista, possuía obra do pintor. Arlete Brito procurou nas reservas e teve a surpresa de descobrir um núcleo coerente e importante que atestava praticamente toda a carreira de Escada. De facto, Manuel de Brito foi um coleccionador tão sistemático da arte portuguesa da segunda metade do século XX, mas com particular destaque ao período entre 1950 e 1980, que parte do seu espólio está ainda em vias de catalogação. Foi aqui que se localizaram os trabalhos que o Centro de Arte Manuel de Brito agora expõe.

A mostra divide-se por três salas, e segue um critério cronológico, como é habitual nas apresentações institucionais desta casa. No primeiro piso, a sala maior mostra pintura e alguns raros trabalhos sobre papel. O segundo espaço, de menores dimensões, apresenta desenho, sempre a preto e branco com excepção de um núcleo isolado de trabalhos que se destacam por não se incluírem em nenhuma série. É aqui, por exemplo, que está uma belíssima pintura inspirada nos vitrais de Chartres, onde o artista abstraiu dos motivos neles figurados para apenas guardar a multiplicação de círculos de cor saturada pela refracção da luz nos vidros coloridos. A última sala, finalmente, está dedicada à documentação crítica sobre a obra de Escada, o que permite testemunhar da sua apreciação em Portugal enquanto viveu: o artista, como muitos outros seus contemporâneos, emigrou para Paris, aí mal sobreviveu, tendo regressado a Lisboa depois da Revolução de 1974. Morreu quando ainda era apenas conhecido da crítica e de alguns círculos mais educados, aos 46 anos, em 1980.

E, no entanto, integrou o grupo KWY, com Lourdes Castro, René Bertholo e outros, bem como o Movimento de Renovação de Arte Religiosa que foi significativo em Portugal na década de 50, a exemplo de movimentos congéneres noutros países da Europa. Tal como a de outros participantes do KWY, a obra de Escada parte de uma abstracção gestual na década de 50 para, no seu caso, a definição de signos que se multiplicam e replicam no espaço da tela, por processos de simetria, declinação, associação. Por vezes, como sucedeu em finais dos anos 60, começos dos anos 70, este método de trabalho extravasava a bidimensionalidade do suporte, e declinava-se em dobras e relevos feitos em papel, metal, plástico; a colecção Manuel de Brito possui aliás bons exemplares desta fase, que apesar dos sinais evidentes de fragilidade permanecem como fortes marcações do interesse pela figura que a arte revelava à época no Ocidente.

Os anos 80 são de regresso a uma figuração de pincelada livre, sempre acompanhando o devir da arte internacional. É aliás notável esta atenção que Escada demonstra pela produção artística entendida no seu sentido mais globalizante. E, se de facto, como a crítica da época não se cansou de repetir, a sua obra permaneceu ignorada em terras lusas, isso deveu-se sem dúvida à época em que ela se materializou: só a partir dos anos 80 é que se nota um esforço concertado de projecção dos artistas portugueses no estrangeiro, e mesmo depois dessa década é que colegas e contemporâneos de Escada conhecem o reconhecimento público da sua obra - recorde-se, para apenas citar dois exemplos, os casos de Lourdes Castro e de Helena Almeida, que representaram o país em tempos relativamente recentes em grandes bienais de arte.

Para além da pintura, que desde 1980 que não víamos em retrospectiva em Portugal, a grande surpresa da exposição reside na colecção de desenhos a tinta da china ou ponta de feltro sobre papel: um conjunto notável, onde se revela o processo de trabalho do artista, desocultando de uma base de grande liberdade informal a proliferação de signos quase caligráficos que caracterizaram o seu trabalho. É aqui que a colecção se revela excepcional, e o gosto e o saber do coleccionador mais do que acertados, na época e mesmo no presente.

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