“Qualquer casa tem uma ética”

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Teresa Sá

Os alunos de arquitectura da Universidade Lusíada, em Lisboa, projectaram casas, e um bairro, para os senhores, personagens da série O Bairro de Gonçalo M. Tavares

Vinte e nove projectos escolhidos entre os cerca de 400 feitos pelos estudantes de arquitectura da Universidade Lusíada podem ser vistos na Lx Factory até dia 26, do meio-dia à meia-noite. É a exposição “Senhores Projectos”, a partir de personagens dos livros de Gonçalo M. Tavares. Entrevista com o escritor.

Os seus senhores [personagens da série O Bairro] são clientes difíceis para um arquitecto?

Ao fazerem casas para personagens de ficção os alunos estão a trabalhar para uma entidade que por um lado não pode resmungar com a casa mas que, de um ponto de vista negativo para o arquitecto, não pode dialogar nem dizer mais nada senão o que está no livro.

O que eu acho muito interessante é esta ideia de casas, a coisa mais material e física do mundo, pensadas para personagens de ficção. É o choque entre o totalmente abstracto e o totalmente concreto, o totalmente ficcional e o totalmente material.

Explicou aos alunos algumas características das personagens. Uns optaram por se agarrar a características gerais, outros a momentos ou gestos mais concretos. Qual é que seria a sua abordagem se tivesse que fazer o projecto?

O que me agrada precisamente é dar essa liberdade de interpretação a quem lê. São livros muito à volta da casa, da construção. O senhor Walser é talvez o mais evidente: começa pela inauguração da casa, e no próprio dia a casa começa a ter problemas, há carpinteiros que voltam, canalizadores que regressam porque há coisas que não estão bem, e o dia termina com a casa feita em pedaços.

O senhor Valéry é muito espacial, tem muito a ver com o lado direito, o lado esquerdo, a sua própria casa tem características muito ligadas a esta lateralidade.

Este projecto é muito engraçado porque sempre tive uma grande atracção pelo urbanismo e a arquitectura. Não é por acaso que no desenho original do bairro estão previstos o senhor Lloyd Wright e o senhor Corbusier. A arquitectura estava já há muitos anos presente na minha cabeça e nesse sentido este projecto é invulgar e ao mesmo tempo quase natural porque eu penso muito espacialmente.

Todas as questões filosóficas com que os senhores se deparam passam por aí, eles pensam o mundo e a vida muito nessa relação com o espaço físico, a ordem, a intervenção do homem sobre o caos, não é?

O grande dilema do senhor Walser – o título do livro é “O Senhor Walser e a floresta” – é a ideia de que a casa é uma luta contra a floresta, é a luta mais antiga, a tentativa de criar ordem no meio da desordem que é a floresta. O senhor Walser está fascinado com a ideia de fazer a casa no meio da floresta. O que ele diz no início é ‘vou fazer um núcleo de racionalidade no meio da animalidade, da bestialidade, da barbárie’.

A construção da casa tem um traço muito humano que tem a ver com a linha direita, que está presente em qualquer casa. A linha recta é claramente uma criação humana, é impossível termos uma linha recta na natureza. Quando vemos uma floresta que termina numa linha recta temos aí um sinal de que o homem participou.

O grande conflito entre a casa e a floresta é o conflito entre linhas direitas e as linhas tortas, imprevisíveis, os percursos completamente instáveis que a natureza produz. Mais do que um diálogo é uma luta. Vê-se essa luta quando se constrói uma casa, mas também quando se abandona uma. Vê-se que rapidamente a natureza quer ocupar o espaço, e as árvores começam a infiltrar-se. É claramente um combate, e a arquitectura é uma das frentes desse combate.

Essa relação dos senhores com o espaço passa também, por exemplo, pela forma como se movem, se deslocam.

Sim, estou a pensar no senhor Valéry, que anda sempre pelas mesmas ruas, ou o senhor Calvino que a certa altura anda sempre ao mesmo ritmo, e quando está muito adiantado para um encontro vai andando na diagonal em vez de andar em linha recta, para não acelerar o ritmo. Olhando agora para os livros sob um ponto de vista espacial encontro milhares de coisas. O senhor Brecht, que é o contador de histórias, e que aparentemente nada tem a ver com o espaço, está a contar uma história numa sala onde no início está muito pouca gente, depois as pessoas vão entrando e a certa altura entra tanta gente que começa a tapar a porta de saída, e o senhor Brecht, pelo seu próprio sucesso, já não consegue ter acesso à saída.

Há também uma associação entre desenho e pensamento. Num outro livro, “Breves notas sobre ciência”, escrevo que não acredito naquilo que não se pode desenhar. Os pensamentos devem ser coisas que possam ser desenháveis. Quando não são significa que estamos a entrar no campo do abstracto absoluto. É um pouco por isso que eu gosto de palavras como mesa, cadeira, copo, rua e não gosto tanto de palavras que não são materiais. Quando podemos desenhar uma coisa é sinal de que são coisas que têm volume, ocupam espaço, e isso para mim é muito importante. Está ligado a uma tendência que eu tenho que é de escrever sobre coisas em que se pode tocar e afastar-me tanto quanto possível do abstracto puro.

Mas em muitos dos senhores as ideias são puras abstracções.

O que acho estimulante é uma mistura entre coisas concretas e reflexão. O senhor Valéry é muito isso, uma pessoa muito reflexiva e muito teórica, mas que está constantemente a tropeçar na realidade material. Esse diálogo agrada-me muito. É uma coisa que todos nós temos: um mundo interior que às vezes é compatível, mas outras não é nada compatível com a realidade.  

E essa necessidade de criar uma ordem que se levada ao extremo da obsessão acaba por cair no absurdo e na desordem total, porque não se consegue levar ao limite um pensamento completamente lógico sem cair no extremo oposto, no caos.  

É isso. Coisas muito teóricas como o que aprendemos na física clássica, que agora já é um pouco contestado, mas que nos diz que o percurso mais curto entre dois pontos é a linha recta, se aplicarmos essa ideia na prática é evidente que vamos chocar com alguma coisa. A realidade exige que me desvie, que dê a volta. Para nosso mal, ou para nosso bem, a realidade não é um campo plano sem obstáculos que está disponível para fazermos o que quisermos e aplicarmos as nossas teorias. Se aplicarmos essa ideia numa cidade vamos acabar por entrar em situações absurdas como subir acima de bancos de jardim, passarmos por cima de pessoas. Se formos totalmente racionais vamos entrar no absurdo.

Tem um texto precisamente sobre essa relação entre a arquitectura e a natureza [“Arquitectura, natureza e amor”, disponível em www.dafne.com.pt].

Esse texto anda muito à volta da questão ética da arquitectura. Na construção de uma casa o que escolhemos é um conjunto de movimentos possíveis. Se temos um corredor de quinze metros estamos a possibilitar um movimento em linha recta de quinze metros e a eliminar a hipótese de andar em linha recta durante vinte metros.

A escolha de uma lógica de espaço é a escolha de um número de movimentos e de uma ética. Isso é muito discutido relativamente à arquitectura nos Estados totalitários, por exemplo as grandes escadarias que obrigam uma pessoa a começar na parte de baixo e a subir com muito esforço. Também o manípulo de uma porta pode ser mais autoritário do que outro.

Assume-se que a arquitectura só intervém politicamente em situações de totalitarismo. O que me parece é que a arquitectura em qualquer momento intervém politicamente. Qualquer casa tem uma ética.

O novo livro, “O Senhor Swedenborg e as investigações geométricas”, é muito mais visual do que os outros. Porquê?

É muito à volta da geometria – tentar que a linguagem da geometria se humanize um pouco. A conjugação aqui interessante é a questão do traço: a letra e o desenho têm a mesma origem. Foram depois para campos completamente diferentes, e temos tendência para esquecer essa origem comum. Mas na impressão de um livro a tinta que faz um traço de uma letra é a mesma que faz o traço de um quadrado. O que eu tentei foi transformar os desenhos em coisas que são lidas, e esperar que as pessoas leiam neste livro quase da mesma forma o texto e os desenhos.

Os arquitectos falam muito na leitura do traço. Os não arquitectos têm dificuldade em ler alçados, por exemplo, enquanto um arquitecto rapidamente lê e interpreta o que está naqueles traços. Na arquitectura o traço é uma coisa que é interpretável, tal como a escrita. É uma linguagem paralela. Essa parte comum entre o desenho e a escrita interessa-me muito, interessa-me cada vez mais.

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