Quanto mais o conhecemos, mais misterioso ele é

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Andy Warhol continua a olhar para nós. Em todo o mundo, com destaque para uma retrospectiva em Paris, volta-se a reavaliar o seu legado. Andy, nunca pareceu estar tão presente.

Foram décadas de discussão permanente e de mediatização sistemática. Toneladas de documentos produzidos sobre ele. Já tudo parece ter sido dito sobre Andy Warhol. Nasceu a 6 de Agosto de 1928, Pittsburgh. Morreu a 22 de Fevereiro de 1987, em Nova Iorque. Nenhuma data especial se celebra este ano.

Mas entra-se nas livrarias mais comuns de Paris e em destaque estão livros dele. Nos cafés mais mundanos discute-se a sua obra. Nos transportes publicita-se a maior exposição dedicada ao autor desde 1979, aquela que é a mais vasta mostra de retratos da sua autoria alguma vez exibida, "O Grande Mundo de Andy Warhol", no Grand Palais - até 13 de Julho - ou a mostra "Warhol TV", no La Maison Rouge, dedicada aos programas que criou para TV.

Uma mostra da Hayward Gallery de Londres, aberta ao público até Janeiro último, era publicitada com a frase "pensam que o conhecem? Pensem novamente!"

Parece que o mundo está mesmo decidido a fazê-lo. Nos últimos meses, de Berlim a Amesterdão, outras cidades tiveram exposições suas e aquela que será a grande exposição de Outono da Tate Modern de Londres - "Pop Life: Art In A Material World" - irá interrogar o seu legado, olhando para as sucessivas gerações de artistas que se guiaram pelos paradigmas que propagou, de Jeff Koons a Tracey Emin, de Keith Haring a Takashi Murakami ou de Damien Hirst a Cindy Sherman.

Nos Estados Unidos circula a exposição "A Música e a Dança na Obra de Warhol", que interpela a sua relação com a música. São Francisco e, mais tarde, o museu Andy Warhol de Pittsburgh irão receber esta mostra, iniciada pelo Museu de Belas Artes de Montreal.

Warhol, o pintor, o fotógrafo, o cineasta, o fundador em 1969 da revista "Interview" dedicada aos "ricos e famosos", o mentor do grupo rock Velvet Underground, o homem da TV nos anos 80, o actor, o manequim, o "dandy eterno", estratega das aparências, das superfícies, dos rostos, dos aspectos imprevisíveis, volta a ser reavaliado. Nunca desapareceu, é verdade. É omnipresente. É impossível pensar o nosso tempo sem ele, mas existem alturas em que parece estar mais do que nunca no meio de nós.

Porquê agora? Os mais cínicos dizem que é apenas uma reacção das instituições artísticas que, face ao clima de crise, preferem apostar em valores seguros, capazes de atrair o grande público.

Não é essa a visão do francês Alain Cueff, comissário da exposição de Paris. "É verdade que é uma grande figura, mas está longe de ser consensual", diz-nos. "Ao contrário do que se possa pensar, não o foi nos anos 60 e 70 e hoje também não. Às vezes é demasiado subtil e labiríntico para ser entendido na totalidade pelo grande público e, outras vezes, é visto como sendo apenas um artista pop, no meio artístico, o que é redutor. A multiplicação de exposições é, precisamente, um sinal evidente da sua complexidade."

A fila gigante à entrada do Grand Palais, e os sucessivos salões repletos num vulgar dia de semana, parecem contradizê-lo, mas percebe-se o que quer afirmar. Warhol é alguém que se oferece às mais diversas interpretações. Quanto mais parece que o conhecemos, mais o mistério se intensifica. Os olhares sobre ele parecem infinitos. É isso que está a acontecer hoje.

Revisitação constante

A maior parte das retrospectivas da sua obra tinham sido concebidas e produzidas nos EUA. Agora também a Europa o faz. E o olhar é, por vezes, diferente da simples ideia do "pai da arte pop."

Por outro lado, a sua obra é de tal forma aberta, espécie de fenómeno social total onde todos se podem reconhecer pelo menos um pouco, que todos podem procurar a sua verdade nela. É isso que tem acontecido nos últimos anos, com artistas, músicos ou pensadores revisitando o seu legado, cada um deles saindo dessa experiência capazes de fornecer elementos de ligação distintos com a realidade artística actual.

Da dança ao cinema, da música às artes plásticas, da escrita à televisão abriu portas. Os Daft Punk, arautos da música de dança, revêem-se no seu minimalismo radical, na aproximação conceptual e na forma como subverte aspectos menos credíveis da sociedade de consumo. Tal como ele, cruzam linguagens entre a arte, a moda, a música ou o design gráfico.

Criadores de moda como Marc Jacobs ou fotógrafos como David LaChapelle destacam a visão transversal e a multiplicidade e força das imagens ligadas ao seu trabalho, fáceis de serem apropriadas por todos. O cineasta Gus Van Sant diz que é "mais importante e, provavelmente, mais conhecido hoje do que quando morreu", enquanto a fotógrafa Nan Goldin destaca os "Screen Tests", porque "mostram as pessoas tal como elas eram."

O mercado artístico dos últimos trinta anos rege-se pelos seus princípios teóricos e as fronteiras da arte foram esticadas por ele. Recentemente, o coreógrafo francês Jerôme Bel, na revista "Les Inrocktibles", contava uma história exemplificativa. Um dia, Andy terá convidado para jantar em sua casa John Lennon e Yoko Ono, o coreógrafo Merce Cunningham, o músico John Cage e Madonna. Para entrarem no apartamento, tinham que descalçar os sapatos. O único protesto veio de Madonna que terá dito que lhe era mais desconfortável mostrar os pés que os seios.

A história, segundo Jerôme Bel, ilustra como, para Warhol, não havia "alta" e "baixa" cultura. "A ideia que Cage, Cunningham, Warhol e Madonna - quatro dos meus heróis - pudessem jantar juntos parece-me emblemático da arte pop, uma maneira livre de pensar o mundo", dizia. Através de Warhol diz ter entendido que a cultura pop podia ser tão rica e reveladora, uma forma de pensar o mundo, como a chamada cultura erudita.

Voltar às referências

Mas a profusão de arquétipos que tocou vai muito mais além. Problematizou os limites da relação entre arte e economia. Legitimou o processo que torna possível a transformação de uma banal imagem dos "media" numa obra de arte. Interrogou a ideia de autoria, através de uma simples assinatura. Fez a apologia do universo da fama ou denunciou-o, expondo-o. Nunca separou ficção e realidade. Antecipou a tele-realidade, profetizando que todos teriam direito a "quinze minutos de fama".

Nele a banalidade transmutou-se em excepção. Colocou no mesmo pedestal Mao, Marilyn, latas de sopa, acidentes, suicídios, crânios, a morte. "A morte pode fazer de vocês estrelas", disse.

Dario Oliveira, um dos responsáveis pelo Festival Curtas de Vila do Conde, este ano de 4 a 12 de Julho, e que apresentará um projecto comissariado pelo Museu Andy Warhol de Pittsburgh ("13 Most Beautiful... Songs For Andy Warhol's Screen Tests"), é da opinião que o renovado interesse em torno da sua obra se deve à falta de pontos de referência neste período. "Vivemos a grande velocidade, há vazios, faltam referências", diz. "Da música à arte contemporânea há convulsão. É necessário voltar atrás, perspectivar as coisas. A presença dele, agora, deve-se a isso. É uma personalidade central, estruturante, pela sua vida e pela sua obra. É necessário não esquecer que foi ele que impôs uma série de novos paradigmas, da música às artes visuais."

No festival serão apresentados 13 dos clássicos testes de imagem de Warhol, onde aparecem Nico, Lou Reed ou o actor Dennis Hopper, personagens que circulavam pela Factory, o atelier e o espaço por onde passou toda a fauna boémia e artística da época.

Originalmente concebidos na década de 60, os "screen tests", serão apresentados ao vivo com uma banda sonora composta por temas originais e versões, tocados pela dupla Dean & Britta.

Warhol ama-se. Mas também se odeia. Suscita irritações. Nas projecções dos filmes ouviu insultos. Em "Sleep" a câmara fixa-se num homem que dorme durante cinco horas. Ele, provocador, afirmou que desejava "fazer os piores filmes do mundo".

Os seus filmes ainda hoje dividem os cinéfilos. "Não participou na evolução das linguagens cinematográficas, mas teve uma contribuição fragmentada com uma obra que, através da distância do tempo, percebemos que foi importante. Os 'scream tests' não são cinema convencional, mas é apaixonante a forma como ele se apropriou das figuras que rondavam a Factory e as fixou", defende Dario.

Artista religioso

Para muitos, a verdadeira obra de arte de Warhol foi a sua vida, uma existência cercada por lantejoulas à superfície, experienciada com distância no íntimo. Depois da sua morte, a interpretação da obra artística abriu-se às mais diversas teorias, das mais frívolas às mais empoladas. Pela variedade da sua actividade, aponta Alain Cueff, ainda existe espaço para muitas surpresas.

No caso da retrospectiva de Paris interessou-lhe mostrar que os seus retratos individuais (Stallone, Eastwood, Debbie Harry, Nico, Grace Jones, Armani, Pelé, Diana, Jagger, Jimmy Carter, Joseph Beuys, Leline, Presley, auto-retratos do próprio, etc, etc) constituem também um retrato colectivo das décadas de 60, 70 e 80, até porque do princípio ao fim os retratos se impuseram como um dos traços característicos da sua obra.  

Na maior parte deles aplicou a mesma técnica, serigrafia sobre tela impressa, a partir de retratos feitos com polaróides. Na visão de Cueff a exposição tenta mostrar "um espírito habitado por uma cultura religiosa". Nos anos 60 ele inscrevia-se numa tradição moderna, "era-lhe impossível apresentar-se como um artista religioso", afirma. "Um dos desafios desta exposição foi precisamente tornar essa dimensão religiosa mais visível."

Terá sido, afinal, Warhol um artista religioso que retratou os ícones do seu tempo à imagem do que a igreja vem fazendo com as imagens de santos há muitos séculos? É possível. Aliás, a exposição de Paris é concluída com a figura de Cristo, da série inspirada em "A Última Ceia" de Leonardo da Vinci, como se afinal aquilo que fomos levados a observar ao longo de mais de 246 obras não constituísse mais do que um percurso bíblico. "Essa última obra funciona como reverberação de todas as outras", esclarece Cueff, para quem Warhol, apesar de parecer o artista mais conhecido da segunda metade do século XX, continua envolto em segredos.

"Longe de mim querer torná-lo num místico, mas há uma grande sinceridade no seu pensamento religioso. O mito sociológico do artista de supermercado, algo irónico, muitas vezes, mais não fez do que esconder essa coisa raríssima que se chama génio. Ele tinha-o. Tanto como Picasso, por exemplo."

Nos anos 60, os seus retratos tinham fortes ressonâncias autobiográficas, de Judy Garland aos membros da Factory. Nos anos 80 dominam os retratos mundanos, alguns deles encomendados - por 25 mil dólares cada - por gente rica. "Alguns desses retratos são desvalorizados porque se sente neles o cheiro do dinheiro, mas isso não os desqualifica enquanto obras" diz Cueff. "Ele pode ter pintado o 'parecer' mas utilizou meios plásticos para fazer sobressair a consistência do 'ser'".

Chegar às parábolas e ideias religiosas de Warhol, eis uma narrativa que muitos dificilmente lhe colariam. O facto de se ter tornado famoso em vida "tornou-nos preguiçosos", na forma como o olhamos, avalia Cueff. "Se lhe colarmos apenas o autocolante da 'arte pop' nunca o perceberemos inteiramente."

Hoje, mais do que nunca, parece sujeito às mais diversas reinterpretações, barómetro e espelho de várias épocas. Como esta. Ele, que um dia disse que "era profundamente superficial", deve estar contente com o efeito que continua a provocar.

Capaz das mais diversas camuflagens e reincarnações, e durante décadas suspeito de "vampirizar" tudo e todos, é agora "vampirizado". É por isso que continua tão presente. No fundo, somos todos 'warholiens'.

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