Mude Finalmente

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A grande novidade do novo Museu do Design e da Moda (Mude) é a colecção de moda do acervo Francisco Capelo, nunca exposta em Portugal. Mas na exposição inaugural Antestreia há também o design de equipamento que, com as peças de moda, é um conjunto de símbolos e sintomas sociais de um século de mudanças. O Mude abre finalmente as portas.

Ao lado do móvel de assento vermelho vivo de Verner Panton repousa um minivestido negro e metálico de Pierre Cardin. Através do sofá-móvel "Living Tower" vê-se um gira-discos pick-up de Dieter Rams e um vestido Givenchy. O novo e muito esperado Museu do Design e da Moda (Mude) é como um sistema de vasos comunicantes entre design de equipamento e design de moda. E é também uma colecção valiosíssima e nunca exposta em Portugal de mais de mil peças de moda do mundo. Detalhe: o Mude é ainda um work in progress.

O museu situa-se na proximidade que une a Rua Augusta ao Terreiro do Paço, ideal para captar público turístico ou nacional. Na sua primeira exposição, "Antestreia - Flashes do Mude", vai de Le Corbusier a Azzedine Alaïa num sopro. É uma antestreia por a inauguração do museu ser feita quando ainda não está pronto, uma vez que as obras de recuperação do edifício do antigo BNU só devem arrancar no final de 2010. E nesta exposição estão 170 peças da colecção Francisco Capelo que contam a história do século XX (e um pouco da do início deste século XXI) em silhuetas e objectos de desejo. São apenas uma amostra de um acervo de cerca de 2500 peças de design industrial, de equipamento e de moda (1268, segundo as contas de Capelo) coligido nos últimos 20 anos pelo coleccionador.

Como um livro de recortes tridimensionais, integram a Antestreia “algumas das peças mais importantes do ponto de vista da reformulação dos hábitos, das mentalidades, da habitabilidade do espaço, da maneira como o corpo foi sendo desenhado, como foi construída a sua relação com o outro” do século XX, explica a directora do museu, Bárbara Coutinho, ao P2. As portas são abertas amanhã ao público, que durante o primeiro mês terá entrada gratuita. Daí em diante, o bilhete deve rondar os três euros, mas o preçário ainda está em discussão.

Lá dentro estão Dior, Yamamoto, Walter van Beirendonck, Gaultier, Madame Grès (moda) e Droog Design, Jean Prouvé, Russel Wright ou Charles & Ray Eames (equipamento). As cadeiras empilháveis e o móvel de assento "Living Tower" de Verner Panton, claro, o candeeiro gigante de Gaetano Pesce, sim. Mas outros ficaram de fora, à espera no armazém dos Olivais em que se aclimatam as peças que não estão no arranque do Mude, mas que pertencerão sempre ao seu acervo.

O imponente balcão do antigo BNU serve de fronteira expositiva. No centro estão obras dos pais fundadores do design. Nas margens, viajamos dos anos 1960 em diante, através dos clusters expositivos que encenam as peças centrais - a cadeira de Hans Wegner para o debate Kennedy-Nixon, com o respectivo vídeo em fundo; os discos dos Doors, Beatles e Rolling Stones com o som de ("I can’t get no") satisfaction a emoldurar o casaco de peles da boutique londrina Biba que Mick Jagger usou num álbum dos Stones; os minivestidos de Rudi Gernreich que a Time pôs na capa em 1967 (o exemplar chegou às mãos de Bárbara Coutinho quando o P2 visitava o museu).

São 15 núcleos expositivos - do Moderno do início do século XX (Mies van der Rohe, John Angelo Benson) ao Espírito Internacional do design em torno da utopia pós-I e II Guerra com Charlotte Pérriand, Le Corbusier, Jean Prouvé, passando pelo trabalho da Herman Miller no desenho de interiores e pelo manifesto do Bom Design de Dieter Rams. Também o New Look de Christian Dior, o ideal futurista de Paco Rabanne, Pierre Cardin e o bar esférico de François Arnal, além da contestação ao Bom Design pelo grupo Memphis e a explosão conceptual das escolas japonesa e belga de moda. Sintomas sociais de um século de voragem de mudança.

A ausência de “barreiras visuais” serve para se usufruir simultaneamente da “estrutura histórica” da colecção e para se poder “vaguear e descobrir outras ligações - por exemplo, entre as peças da Dior de 1947 e o que o John Galliano faz para a Dior já nos anos 1990”, explica Bárbara Coutinho. A ideia é “descobrir outras narrativas por estes discursos visuais que se fazem entre o objecto e a moda e o próprio espaço”.

A moda está em grande destaque, visto que esta é a sua estreia em Portugal. “Quando imaginei esta colecção com um destino museológico, a moda era parte integrante”, frisa Francisco Capelo, o coleccionador de colecções (são de moda, design, máscaras, cerâmicas chinesas, marionetas...).

Mas a moda nunca entrou no Museu do Design do CCB por “falta de curiosidade” da gestão do centro, responde o agora presidente do conselho de gestão do Mude. Ei-la na Baixa de Lisboa com Mondrian incorporado nos vestidos de André Courrèges e na estante "Bibliothèque Méxique" de Charlotte Perriand. Pôr objectos e roupas em diálogo é “natural e óbvio” para Bárbara Coutinho, sobretudo porque os criadores “partilham práticas criativas, influências, conversas e amizades”.

Glossário sensorial do Mude: contaminação entre peças, frequência e não apenas visita do público, leituras cruzadas, linguagem imagética. Um esperanto visual do gosto.

Da fonte do acervo do Mude (leia-se Francisco Capelo) vai continuar a brotar mais design. As compras continuam e o design português, de Cassiano Branco a Tomás Taveira, passando por Ana Salazar, Manuela Gonçalves e José António Tenente, integram-na.

Atento a cada passo em torno das peças já dispostas, a cada manipulação do Bar sur Patins de Paul Dupré-Lafon (1937) ou do vestido de ópera de Pierre Balmain (1957/58), Francisco Capelo está a viver a concretização de “um sonho com dez anos”. Entre o fim da relação com o CCB e o impasse relativo à sede do museu após a compra da colecção pela Câmara de Lisboa, Capelo não perdeu o gosto pelos “seus” objectos. “Estes objectos são vividos, enquanto a pintura ou a escultura são muito mais passivos. E são tão fantásticos que as pessoas têm que... não digo ter vontade de os roubar, mas de os ter. Têm de ter desejo por eles e isso é fantástico.”

 

Peças com histórias

Francisco Capelo fala das suas compras

 O Japão em Paris

“É uma peça que não pode ser mais do que magnífica”, diz Francisco Capelo sobre a túnica dourada Issey Miyake. “Achei que precisava de três para vermos a dimensão escultural” da escola japonesa. Comprou mais duas. Ao lado dos Miyake estão um saia-e-casaco Yohji Yamamoto, um vestido Jean Paul Gaultier e um vestido Azzedine Alaïa. E uma cadeira de Shiro Kuramata (1986). A narrativa deste conjunto é a do “minimalismo na concretização dos efeitos”. Os adereços são o pregueado ou o entrançado do próprio metal. “E depois há a ideia do estranho e do desconforto.” Gaultier faz a ligação com a Paris que albergou todas estas criações.

Festejar como se fosse 1959

O que têm em comum um vestido violeta de Hubert de Givenchy (ver foto de capa) e um gira-discos de Dieter Rams? “Quando se vê duas coisas que foram feitas na mesma época, mas em separado, e que são tão perfeitas... É fantástico”, diz Capelo. Na época, “o preço do pick-up não era para a média dos mortais, era para a média alta dos mortais...”. O gira-discos era um objecto de luxo. Como um Givenchy.

A importância de se chamar Capelo

A famosa saia de seda de Elsa Schiaparelli (1948), eco da inspiração da criadora no surrealismo e na lagosta de Dalí, tem tudo: volume, cor, evocação. E Francisco Capelo tinha de a ter. Comprou-a num leilão em 1998 e uma semana depois, num jantar em que conheceu Azzedine Alaïa, ouviu o costureiro tunisino falar do misterioso comprador da saia Schiaparelli. Resposta de Francisco Capelo: “C’est moi!” A amizade com Alaïa nasceu aí e não parou. Foi ele que restaurou alguns dos modelos agora no MUDE e foi também ele, além de Sonia Rykiel, Jean-Charles Castelbajac e das directoras das casas de couture parisienses, que o ajudaram a comprar as peças de moda mais raras.

J.A.C.

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