O cartaz político ainda é uma arma?

Foto
Shepard Fairey

É um diálogo entre símbolos, corpos e rostos: Lenine, Che, Otelo, Nixon, Bush, Obama... No Museu do Design e da Moda, Lisboa, em "Ombro a Ombro: Retratos Políticos". Suscita perguntas. A política portuguesa pode, um dia, produzir um cartaz com o impacto icónico daquele, com o rosto de Obama, da autoria de Shepard Fairey?

Os "outdoors" andam nas auto-estradas, as máquinas eleitorais preparam as suas campanhas e os políticos treinam para convencer o eleitorado. Estamos em ano de eleições (uma já passou, duas vêm a caminho) e, com sentido de oportunidade, o Mude - Museu do Design e da Moda, em Lisboa, recebe, até 13 de Setembro, uma imensa galeria de cartazes: "Ombro a Ombro: Retratos Políticos" (exposição comissariada por Christian Brändle, director do Museu de Design de Zurique). Estão lá Che Guevara, Lenine, Mussolini, Hitler, Mário Soares, Otelo, Barack Obama, Mitterrand ou George W. Bush. Encenados por artistas, designers, propagandistas, com e sem assinatura.

Os formatos, os estilos e os objectivos das imagens expostas são diversos. Umas fazem o culto da personalidade, outra servem a campanha eleitoral clássica ou a simples propaganda política. Todas, porém, permitem um reencontro do visitante (que na maioria dos casos será, também, um eleitor) com o passado e o presente da vida política. Uma parte de "Ombro a Ombro" também inclui cartazes retratos anódinos, limpos, absolutamente esquecíveis, em particular os portugueses e aqueles produzidos pela publicidade política contemporânea, o que leva a perguntar: há qualidades estéticas no cartaz político? Ou este é (tem que ser) necessariamente pouco criativo?

As orientações do "marketing"

Mário Moura, crítico de design e autor do blog ressabiator.wordpress.com, explica a pobreza gráfica da generalidade dos cartazes contemporâneos com o predomínio da publicidade política: "Têm sido muito raros os cartazes políticos dos últimos anos que dão vontade de pendurar em casa. A maioria, mesmo os de partidos com ideologias opostas, acaba por ser muito parecida". E esta homogeneidade visual tem objectivos concretos, até previsíveis: aponta, claro, ao centro. "Se um cartaz representar uma força de política de modo demasiado evidente arrisca-se a alienar indecisos e pessoas de outros partidos políticos. Por isso, são cada vez mais graficamente neutros e semelhantes entre si".

Neste contexto, onde as orientações são ditadas pelo "marketing" e a publicidade, os designers pouco podem fazer: "Limitam-se a fazer o arranjo final da fotografia e do slogan sobre o papel. Contam-se pelos dedos as campanhas que se apoiam sobre uma ideia gráfica".

A perspectiva de António Costa Pinto, politólogo e investigador do Instituto de Ciências Sociais, não se distancia muito da de Mário Moura, mas parte de outras premissas. A propósito de um par de cartazes, na exposição, que juntam, como casal perfeito, John McCain e Sarah Palin, a dupla republicana derrotada nas presidenciais dos EUA, considera: "São terríveis do ponto de vista estético, mas cumprem bem a sua função. São dirigidos a um eleitorado que é o da América provinciana, dos valores conservadores e religiosos". E acrescenta: afinal, "os cartazes são instrumentos racionais de conquista de poder, não lapsos estéticos".

Em Portugal, a criatividade no poster político teve o seu período áureo logo após o 25 de Abril. Mas a chegada do "marketing" político alterou o cenário: "Nos finais dos anos 70, os partidos que em Portugal acabariam por dominar a cena política já tinham alguma empresarialização, mas era muito pequena. Foi com as candidaturas presidenciais do [General] Ramalho Eanes e a consolidação da nossa democracia que a profissionalização na propaganda política se concretizou". Apareceram as agências de comunicação e a publicidade e a sua utilização aumentou numa dinâmica inversamente proporcional à militância partidária. A realidade alterara-se: "Os partidos não eram os mesmos de há 30, 40 anos quando eram partidos de militantes."

Determinado como um meio específico, neutro, esvaziado de ideologia, o cartaz político, feito de papel, para estar na rua, tem hoje uma presença mais modesta na actividade política. António Costa Pinto concorda: "Sim, foi predominante entre o final do século XIX e os anos 70 do século XX, mas a tendência para a utilização de outros suportes é cada vez maior. Por outro lado, o mundo é muito diverso. Há camponeses nos Andes que precisam de votar, camponeses chineses que um dia irão votar e nestes casos é a propaganda política mais tradicional que será convocada". E não precisamos de ir mais longe: "Em Portugal fala-se sempre nas dimensões da inovação, da blogosfera, dos sites, mas a maior parte da propaganda política continua a ser feita nas chanfanas e nas feiras".

Para Mário Moura, onde os designers têm maior liberdade para trabalhar com os cartazes "é nos partidos pequenos e nas causas mais independentes". As imagens criadas são, talvez, eleitoralmente menos eficazes, "mas a longo prazo podem tornar-se ícones poderosos que são frequentemente apropriados e reapropriados por diferentes grupos, ideologias e partidos ou mesmo produtos. Os cartazes baseados na figura de Che Guevara são um bom exemplo".

Em suma, o cartaz ainda é uma arma. Mais discreta ou eficaz, com poder de fogo diminuído, continua a existir nos "outdoors", na internet, nas caravanas partidárias. Como uma representação gráfica dos candidatos e da política (que temos).

Os cartazes que merecemos

Se o cartaz como elemento da propaganda política tem com objectivos convencer, conquistar, mobilizar, onde entra o design? Mário Moura: "O design é um processo muito sensível a mudanças políticas, mesmo que pequenas, pois é um processo de negociação entre várias pessoas. E o resultado final depende da forma como esse processo se organiza. Numa grande empresa, por exemplo, o objecto final está dependente de uma série de aprovações muito grande". Os efeitos desta prática são inevitáveis e limitam a invenção.

Condenado a ser um produto de uma forma de administração empresarial (associada à ideologia neo-liberal), o design político espelha um desencanto que, segundo o crítico, se descobre no próprio design. "A falta de fé na política está ligada a uma falta de fé no design. Se uma campanha usa design demasiado sofisticado é logo acusada de se preocupar demasiado com a imagem. O que acontece é que a maioria das campanhas políticas são não apenas contra o design vistoso como contra o próprio design. Se neste momento a política profissional precisa de recuperar a sua credibilidade, o design tem certamente algum trabalho nesse sentido". E, nem por acaso, o panorama visual e gráfico das campanhas eleitorais portuguesas precisa, com urgência, se não de mais credibilidade, pelo menos de mais arrojo. Os cartazes das últimas europeias, com destaque para os partidos do poder, foram soporíferos dirigidos aos olhos. Imagens de fotógrafo de subúrbio, tão risíveis quanto incómodas. Faz falta um pouco mais de verve, imaginação e convicção. A bem da democracia e contra a abstenção.

O cartaz Barack Obama, da autoria de Shepard Fairey, é, na opinião de Mário Moura, um dos exemplos raros de um "bom cartaz " contemporâneo: "De todas as apropriações da imagem de Obama, é a mais bem sucedida. Tornou-se mais oficial que a imagem oficial. Agarrou naquilo que a campanha de Obama procurava transmitir, uma imagem de esperança no futuro, mas também uma nostalgia de uma América mais inocente e sensata". E embora sem inaugurar uma nova forma de criar imagens políticas - Shepard trabalha a partir da apropriação de imagens históricas e a imagem de Obama remete para os cartazes realizados durante o New Deal - veio entretanto recuperar o formato do cartaz, trazendo-o não tanto para a rua, mas para a internet.

A política portuguesa pode, um dia, vir a produzir um cartaz com semelhante impacto icónico? António Costa Pinto tem dúvidas e justifica-as com a natureza política da nossa democracia: "Faltam-nos algumas coisas. O nosso sistema político não sendo anti-presidencial, é apesar de tudo menos pessoalizado. Temos eleições para a Presidência da República, mas o cargo institucional do presidente é mais anónimo". E a esta particularidade acrescenta-se outra: "Falta-nos uma dimensão que é mais difícil de introduzir em Portugal: a dimensão messiânica; ou seja, alguém que numa conjuntura de crise possa protagonizar um modelo de esperança para a sociedade americana".

José Luís Garcia, sociólogo, também investigador do Instituto de Ciências Sociais enuncia outras razões que se encontram com as apresentadas pelo seu colega: "O sistema político da União Europeia, e de cada um dos Estados europeus, não tem tendência a forjar personagens com a força mítica e icónica de um Barack Obama. A primeira porque a sua personalidade mais importante resulta de uma escolha feita pelos directórios dos partidos maioritários nas costas dos eleitores. E do ponto de vista de cada um dos Estados, por razões sociais e políticas de fundo, as oligarquias políticas europeias não permitem que possa surgir um jogador que, nesse terreno, pudesse restituir uma certa esperança nas transformações políticas. E se não aparecem jogadores, não podem aparecer estrelas da política ou um cartaz como aquele."

José Luís Garcia não está, no entanto, convencido da potência crítica (e da longevidade) do poster assinado por Shepard Fairey e coloca-o dentro de um conceito proposto por Siegfried Kracauer, sociólogo e crítico cultural alemão do século XX: o ornamento da massa. "Ele prenunciava o torpor contemporâneo diante da inundação de imagens industrializadas e acreditava que esse fenómeno podia destruir os traços decisivos da própria consciência. Creio que este tipo de cartaz se inscreve nessa ideia de ornamento da massa, como uma espécie de padronização de coreografias e de traços". E propõe um exemplo: "Colocar a face do Obama em traços que podiam servir à representação de jogadores de futebol ou estrelas de cinema significa que estamos a assistir ao fim de fronteiras entre formas de cultura conduzidas por códigos banais e primários".

Então, não há razão para projectarmos esperanças na figura e no cartaz? "Não lhe retiro a força icónica, mas, na minha opinião, a sua força social é efémera. Suscita efervescência, mas de baixa potência. E receio que a personalidade do Obama esteja transformada, através dessa imagem, numa partícula de massa. É um risco, mas não temos alternativa". O cartaz ainda é uma arma? Sim, mas efémera como sempre foi, antes de passar à condição de documento visual e político.

Sugerir correcção
Comentar