Olá, senhor Valéry, gosta da sua casa nova?

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Os alunos de Arquitectura da Universidade Lusíada projectaram casas e um bairro para os senhores da série de livros de Gonçalo M. Tavares. Clientes difíceis?

Irá o senhor Valéry sentir-se bem na sua nova casa em ziguezague? Irá ele gostar de passear nas ruas do novo bairro calçando dois sapatos esquerdos para ir para a esquerda, ou dois direitos para ir para a direita? Gostará o senhor Brecht de ter uma nespereira no seu pátio para oferecer nêsperas a quem vem ouvir as suas histórias? E o senhor Calvino, continuará a transportar uma barra metálica paralela ao solo quando for à biblioteca de livros gigantes? Conseguirá o senhor Walser garantir que a sua casa sobrevive à inauguração?

O único contacto que os alunos de Arquitectura da Universidade Lusíada tiveram com estes seus "clientes" foi através da leitura dos livros da colecção O Bairro, de Gonçalo M. Tavares, e de uma conversa com o escritor. Conheceram assim as particularidades de figuras tão especiais como os senhores Valéry, Henri, Juarroz, Brecht, Kraus, Calvino, Walser e Breton (todos eles autores e pensadores reais transformados pelo escritor em personagens de características excessivas, sempre oscilando entre a lógica e o absurdo). Depois receberam as encomendas: os do 2º ano para fazerem casas para os senhores e bibliotecas para o bairro, e os do 5º ano para fazerem o bairro. O trabalho Senhores Projectos envolveu cerca de 400 alunos, e os 29 projectos seleccionados podem ser vistos entre o meio-dia e a meianoite, até dia 26, na Sala das Colunas da Lx Factory, em Lisboa (hoje, às 19h, há uma apresentação pelos alunos e uma mesa-redonda).

Uma casa na floresta

Serão os senhores clientes difíceis? Só Gonçalo M. Tavares pode responder: "Ao fazerem casas para personagens de ficção, os alunos estão a trabalhar para uma entidade que, por um lado, não pode resmungar com a casa, mas que, por outro, mais negativo, não pode dialogar, dizer mais do que o que está no livro. Acho muito interessante esta ideia de casas, que são a coisa mais material e física do mundo, pensadas para personagens de ficção. É o choque entre o totalmente abstracto e o totalmente concreto, o totalmente fi ccional e o totalmente material".

Os alunos pegaram na característica dos senhores que mais os ajudasse como ponto de partida. "O que me agrada é dar essa liberdade de interpretação a quem lê", diz o escritor ao P2. "Alguns livros são muito à volta da casa, da construção. O senhor Walser é talvez o mais evidente. No dia da inauguração, a casa começa a ter problemas, há canalizadores, carpinteiros, que voltam porque há coisas que não estão bem, e o dia termina com a casa em pedaços."

Ao contrário dos outros senhores, Walser afastou-se do bairro e construiu a sua casa no meio da fl oresta, e todo o seu livro gira em torno da ideia de que "a casa é uma luta contra a fl oresta, a luta mais antiga, a tentativa do humano de criar ordem no meio da desordem". A construção de uma casa tem a ver, para Gonçalo M. Tavares "com a ideia da linha recta, que é claramente uma criação humana".

"O grande conflito entre a casa e a floresta é o conflito entre linhas direitas e linhas tortas, os percursos completamente imprevisíveis que a natureza produz." Uma luta que o homem parece ganhar quando constrói a casa, mas que se desequilibra quando se abandona uma casa. "Rapidamente a natureza quer ocupar o espaço, as árvores começam a infi ltrar-se. É um combate e a Arquitectura é uma das frentes desse combate."

É curioso, por isso, que, por exemplo, Teresa Correia, aluna do 2º ano, tenha optado por "escavar" o terreno já existente, colocando a biblioteca no "buraco" que resulta dessa escavação, como se a Arquitectura não se assumisse como tal e se disfarçasse de natureza para melhor intervir nesta.

Um vazio em Lisboa

Os professores da Lusíada - a ideia de usar os livros de O Bairro partiu do professor Fernando Hipólito e a exposição é comissariada pela professora Helena Botelho - colocaram os seus alunos numa dessas "frentes de combate": vazios urbanos nas zonas de Alfama e do Castelo, em Lisboa. "Interessanos reflectir sobre os vazios, esses espaços que são bocados de cidade que faltam", explica Helena Botelho. Assim, ao lado de ficção - "deixámos os alunos perceber o que os marcava nos livros e o que os podia estimular para os projectos" -, surgiu a realidade dos espaços concretos.

Para os do 5º ano, que tiveram que projectar todo o bairro, a grande questão foi decidir como dar unidade a um local onde vivem senhores tão diferentes, cada um com a sua mania. A opção de fazer uma casa que fosse um espelho de cada um poderia resultar numa colecção de edifícios sem qualquer unidade. "Havia a preocupação de ter um espaço uno", diz a professora. Daí soluções como a de Rita Salvador, na qual os edifícios são semelhantes entre si e cada senhor se distingue dos outros pela árvore que tem no seu pátio.

Para os do 2º ano, que tiveram que fazer uma casa para um senhor específico, o desafio foi decidir que característica escolher. Uma preferência, como a relação do senhor Juarroz com os cheiros? Uma característica, como o facto de o senhor Calvino ser profundamente racional e um sonhador? Ou um gesto, como a forma de se movimentar do senhor Valéry?

Tanto faz, garante Gonçalo M. Tavares. O que é importante para ele é que de um "bairro mental, literário, imaginário, sem espaço e sem tempo" - que, aliás, aparece sempre desenhado na parte de trás dos livros da colecção - saíram, pela mão dos estudantes de Arquitectura, "projectos e maquetas que anunciam casas concretas num espaço bem defi nido de Lisboa".

O que - imaginamos nós - os alunos da Lusíada devem agradecer é que ainda não tenham chegado ao bairro dois já anunciados futuros habitantes, clientes de muito peso e que intimidariam qualquer estudante de Arquitectura: o senhor Lloyd Wright e o senhor Corbusier. Quando chegarem, o que dirão?

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