Museu Paula Rego: uma história simples

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Nuno Ferreira Santos/PÚBLICO

Paula Rego é a artista - deu as obras. Eduardo Souto de Moura foi o arquitecto - desenhou o edifício. Cascais, que fez o investimento, inaugura hoje um novo museu. Um história aparentemente simples.

Não é propriamente o tipo de história a que estamos habituados. Portugal: num país onde são mais comuns as colecções que procuram museu e que conhece, como alternativa, museus sem orçamento para constituir colecções, eis, de repente, este caso: o da Casa das Histórias Paula Rego.

Avenida da República, Cascais, à direita depois da Cidadela, afastando-nos ligeiramente da baía e do centro histórico, uma avenida ampla, algo árida. Faixas de rodagem, carros para cá e para lá, uns quantos prédios e moradias escondidos por grades e sebes, e, agora, no número 300, um muro baixo e reboludo, pouco mais do que à altura do nosso peito, a deixar ver um relvado espesso e fofo como um tapete de lã cruzado por um discreto caminho de pedra e cortado a dada altura por uma elegante frente de eucaliptos frondosos. Lá ao fundo, por detrás desta harmoniosa moldura natural, uma construção cor de barro, um edifício térreo e quase cego do qual irrompem duas torres em forma de pirâmide, tudo num vermelho Ferrari que desmaiou e começou a fazer-se rosa-velho.

Aparição misteriosa esta, perfume vago a exotismo tumular de civilização antiga, mas, ao mesmo tempo, com qualquer coisa discreta e muito cá de casa, escala inesperadamente humana e quente, sem os sobressaltos e espantos epifânicos que a maioria da arquitectura museológica contemporânea mais conhecida tem vindo a impor na paisagem internacional.

Duas torres

Um piso térreo com uma entrada baixa e duas torres: esta é a Casa das Histórias Paula Rego vista de fora, a mesma que se prevê que o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva e Paula Rego, ela própria, inaugurem oficialmente hoje pelas 11h00, e que na inauguração ao público, às 18h00, receberá largas centenas de convidados.

Desde que assumiu funções, em 2006, Cavaco Silva - e Portugal com ele - teve oportunidade de assistir a dois momentos do género, o primeiro logo no ano da sua tomada de posse, quando a Fundação Ellipse abriu portas em Alcoitão; o segundo em 2007, quando o Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém reabriu como Museu Colecção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, em Lisboa.

Dois museus, duas controvérsias: após anos de tensões, ameaças e polémicas, Cavaco Silva aprovou, mas afirmou ter dúvidas sobre o modelo do Museu Berardo - questionou a distribuição de poderes entre o Estado e Joe Berardo, o conhecido coleccionador e investidor que cedeu a sua conhecida colecção por dez anos ao país mediante a criação de um pólo permanente para a sua exposição; quanto à Fundação Ellipse, continua com destino incerto meses depois de lançadas as investigações sobre as actividades do Banco Privado Português (BPP) e do seu ex-presidente, João Rendeiro - a empresa de auditoria Delloite apurou em Fevereiro que a Colecção Ellipse, um dos mais importantes acervos de arte contemporânea do país, com cerca de 800 obras de alguns dos mais relevantes artistas internacionais, pertence em 83 por cento ao BPP, e não a Rendeiro, como se pensava, tendo aconselhado a venda como medida de saneamento das contas do banco.

Perante isto, à primeira vista, parece simples a história do museu dedicado a Paula Rego, "uma das maiores pintoras vivas" do mundo, segundo o Finantial Times, que, a propósito da inauguração da Casa das Histórias, dedicou recentemente um longo artigo à pintora, a mais internacional artista portuguesa viva, ou a mais portuguesa das artistas inglesas, dependendo da perspectiva.

Uma história simples, dizíamos: primeiras conversações entre Paula Rego e a Câmara Municipal de Cascais, presidida por António Capucho, em 2004. Menos de dois anos volvidos e com o projecto de arquitectura entregue a Eduardo Souto de Moura, a artista, radicada em Londres há mais de 30 anos mas nascida no Estoril, onde ainda tem uma casa de família, estava a assinar um contrato de doação e empréstimo por dez anos de uma centena de obras de pintura, desenho e gravura, trabalhos correspondentes a um percurso de cinco décadas, dos anos 1960 à actualidade.

Com um orçamento de obra de 5,3 milhões de euros, vindos do Programa de Investimento e Qualificação do Turismo, a primeira pedra do museu foi lançada no início de 2008 e, meio ano depois, ficava apontada uma directora, Dalila Rodrigues, antiga directora do Museu Nacional de Arte Antiga.

É Dalila Rodrigues que nos recebe para uma primeira visita ao espaço, já com a exposição inaugural montada.

A visita de Paula

"A ideia é que o museu seja também a concretização da visão de Paula Rego", diz-nos à partida.

O percurso é cronológico e divido em quatro grandes zonas temáticas. Na primeira sala, trabalhos correspondentes aos dez primeiros anos, de uma Life Painting datada de 1954, altura em que Paula Rego era aluna da Slade School of Fine Arts, de Londres, a obras como Quando Tínhamos uma Casa de Campo (1961) ou O Exílio (1963), técnicas mistas com colagem que cruzam já o statement político com referências da esfera familiar e pessoal da artista.

Depois, o salto é para os anos 1980, quando Paula Rego abandona a colagem e se dedica a um figurativismo cada vez mais assumido em obras como O Macaco Vermelho Bate na Mulher (1981) ou a grande série Óperas (1983), das quais se apresentam, em simultâneo, cinco grandes telas e cinco pequenas aguarelas preparatórias. A etapa seguinte - 1994 a 2005 - assume como marco a introdução do pastel na obra de Paula Rego com Mulher Cão, trabalho apresentado na sala de exposições temporária e que abre caminho para obras cada vez mais realistas e, simultaneamente, teatrais, como Entre as Mulheres (1997), da série O Crime do Padre Amaro, o conhecido e imponente Anjo (1998) ou o tríptico The Pillowman (2005). Apesar de presente noutros momentos, a gravura compõe a última etapa - 1988-2007 - de trabalhos das conhecidas séries Nursery Rhymes, a primeira em que a artista usou esta técnica, e Jane Eyre, baseada na obra homónima de Charlotte Brontë, a litografias mais recentes como as séries Príncipe Pig.

A sala de exposições temporárias está pensada como última visita. É onde até 18 de Março se expõe um conjunto de obras emprestadas pela Galeria Marlborough, a representante internacional de Paula Rego, com trabalhos icónicos como a Filha do Polícia (1986), a série Avestruzes Bailarinas (1995), baseadas em Walt Disney, ou O Vasto Mar de Sargaço (2000), inspirado na obra homónima de Jean Rhys.

"O museu ideal para mim é aqui. É um sítio mágico, muito especial. Não poderia ter um sítio melhor", dizia Paula Rego na altura da assinatura do protocolo de empréstimo e doação de obras, explicando desejar um espaço "despretensioso, divertido, vivo". No início da semana, com a primeira exposição montada, explicava-nos: "Os trabalhos são o menos importante de um museu. O que é importante aqui são as nossas histórias, as nossas histórias portuguesas, que dão vida a tudo".

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