Retrato de Tim Burton enquanto surrealista pop

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Mexe-se freneticamente, de um chilique para outro chilique. O cabelo desarrumado rumo ao céu avança em fios negros e prateados. Uma exposição no MoMa - 700 peças do trabalho de um cineasta, fotógrafo, escritor, desenhador, escultor - olha para Tim Burton, surrealista pop

É uma espiral negra, desenhada com um traço grosso e convicto, mas também podia ser a interminável toca do coelho, o espelho que engole Alice. A linha enrolada já é aviso suficiente de que vamos cair num mundo onde o quotidiano é surreal, onde não se aplicam as leis da proporção ou da gravidade, onde há branco, preto e três cores primárias, onde nada é o que é nem o seu contrário. É um mundo alternativo onde tudo se mistura: medos, desejos, vitórias. É grotesco, mas, como sabemos, também é encantador.

"Há aqui algum médico? Preciso de confirmar se estou vivo ou morto", pediu Tim Burton, depois de se passear pelas salas do Museu de Arte Moderna (MoMa) de Nova Iorque, que desde sábado e até Abril de 2010 alberga a maior - a primeira e até agora única - exposição retrospectiva do seu trabalho de cineasta, produtor, fotógrafo, ilustrador, escritor, desenhador, escultor e artista conceptual.

700 peças representam essas facetas: a maior parte delas desenhos, mas também pinturas, esculturas, marionetas, maquetes, fotografias, adereços e aquilo que no catálogo é designado como "ephemera". Pode ser a capa que concebeu para o disco dos êxitos da Banda de Rapazes da Polícia de Burbank, em 1973, ou o Rapaz-Robot que programou para se desconjuntar na porta da galeria do MoMa - tudo aquilo que, desde a adolescência até ao mês passado, pode fazer prova de uma carreira artística que dura há quase 30 anos.

Os filmes que realizou também estão em exibição, longas e curtas, como "Vincent" (1982) ou "Frankenweenie" (1984), os vídeos amadores caseiros em Super 8 e 16mm "The Island of Dr. Agor", "Houdini: The Untold Story", "Stalk of the Celery Monster", "Luau" e "Doctor of Doom" e a colecção de produções televisivas (a adaptação do conto "Hansel e Gretel", anúncios publicitários para a Timex e o vídeo "Bones" para a banda The Killers).

O museu oferece ainda um ciclo paralelo, "Tim Burton e a Lúgubre Beleza dos Monstros", com os filmes que o impressionaram/inspiraram enquanto jovem - "Nosferatu", de Murnau; "O Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene; "Frankenstein", de James Whale; "Jason and the Argonauts", de Don Chaffey; "Plan 9 from Outer Space", "Bride of the Monster" e "Glen or Glenda" de Edward Wood...

Há muito que o MoMa queria fazer "a maior e mais abrangente mostra monográfica" do trabalho do cineasta californiano de 51 anos agora radicado em Londres, e "depois de Tim Burton o museu nunca mais será o mesmo", confessa o director Glenn Lowry. "É raro um artista deixar-nos entrar dentro da sua mente, e Tim é extraordinariamente generoso em deixar-nos perceber como se sente e como trabalha", prosseguiu, informando que o cineasta garantiu total acesso ao seu trabalho pessoal e privado - coisas que foram feitas para nunca serem vistas e que, nalguns casos, declarou depois Burton, assim deviam ter permanecido.

"Obrigada", retorquiu o homenageado, "nem sabem como me ajudaram a entender-me a mim próprio e a fazer algum sentido das muitas coisas que faço! Na minha vida já aconteceram muitas coisas surreais e boas", enumerou, "conhecer o meu ídolo Vincent Price, fazer filmes... E esta é, se calhar, a maior de todas as experiências assombrosas e surreais. Mas é isso que se procura na vida... momentos grandes, incríveis".

Crescer e viver em Burbank

O grosso da exposição ocupa uma imensa galeria no terceiro piso do museu. A porta é a boca escancarada de um dos seus muitos monstros, mandíbula carregada de cones brancos, olhos escondidos, uma passadeira vermelha a fazer a vez da língua, empurrando os visitantes para as suas entranhas.

O tapete vermelho cobre todo o corredor onde seis ecrãs debitam os seis capítulos da saga de "Stainboy", o super-herói que tem como superpoder deixar nódoas onde passa e cuja missão, para o histriónico comissário da polícia de Burbank, é eliminar da sociedade todos os "‘freaks' da natureza" como ele próprio.

Depois disso entramos num caixote negro que tem as paredes recheadas de obras fluorescentes: "Ghost Dogs", "Corpse Boy". A atenção, contudo, vai para o objecto gigante que Burton criou para a mostra do MoMa: um carrossel, mas ao mesmo tempo um disco voador, que rodopia incessantemente ao som de uma música hipnótica e irritante.

Continuando, chega-se à grande galeria de celebração da obra de Burton. E de repente todas as coisas se tornam óbvias.

A mais óbvia de todas é que não foi fácil para Tim crescer e viver nos subúrbios insípidos de Burbank, no vale de San Fernando, que alberga alguns dos mais importantes estúdios da indústria norte-americana.

Timothy Walter Burton nasceu a 25 de Agosto de 1958. A relação com o pai, Bill, funcionário do Departamento de Parques e Recreação de Burbank, e a mãe, Jean, gerente da loja de presentes Cat's Plus, nunca foi fácil. A certa altura Tim acabou por ir viver com uma avó.

São angustiantes os desenhos que nos transportam para esse desconforto familiar. Num deles há um menino sentado, minúsculo, desolado, num enorme sofá numa sala despojada a não ser por um quadro de uma galinha com pintos e dois candelabros com cauda de pássaro. Outros mostram o mesmo menino num sofá de psiquiatra, ou amarrado com correias a uma cama de dossel cravejada de picos. Como foi a sua infância em Burbank? "Já alguma vez viu o inferno de Dante?"

O pudor, talvez, impediu a exploração dessa vertente. Mas a excentricidade, garbo e bizarria do adolescente não é escondida, até é "celebrada" numa vitrina de delícias: uma composição, com quatro erros ortográficos assinalados a vermelho, descrevendo uma ida ao médico para tomar a vacina contra o tétano [e uma invulgar atracção pela "enfermeira enrugada que não podia ser um dia mais velha do que cem anos"]; a cara de "nerd" de Burton na única fotografia em que revela um cabelo penteado num formato de tigela, junto ao desenho dos atletas de futebol americano que enviou para a "newsletter" dos funcionários públicos de Burbank.

Hoje, Burton é quase tão burlesco quanto as suas personagens. Mexe-se freneticamente, como que avançando de um chilique para outro chilique. Gagueja. O cabelo está desarrumado rumo ao céu, avançando em fios negros e prateados. As lentes azuis dos óculos desmesurados não escondem os olhos, são duas bolinhas negras, pequenas mas esbugalhadas. Ainda assim, parece menos estranho do que aquilo que é descrito. É simplesmente desajeitado, como se fosse demasiado grande e demasiado pequeno para o corpo que habita.

Na apresentação prevista para os jornalistas, subiu ao palco para falar e o que disse quase não fez sentido. "Como é que vamos fazer isto? Não sei bem o que é suposto dizer...", confessou, genuinamente perplexo. "Muito obrigado MoMa, muito obrigado", resolveu. "Ah, e quase me esquecia: muito obrigado SyFy [o canal americano de cabo dedicado à ficção científica]. Não devia esquecer-me, até porque era chato. Afinal, eu sou um tipo SyFy!", justificou-se.

O realizador não ultrapassou a sua "malaise" de adolescente - de propósito. Aprendeu a usá-la como um lápis, uma lente, um pincel, tornou-a a "trademark" da sua "persona" e o "cânone" da sua arte. Os críticos até já lhe deram um nome, "burton-nesco", que aplicam a tudo o que surge no seu encalço.

"A sociedade tem uma fórmula para enquadrar as pessoas em diferentes categorias, e por qualquer razão desde muito cedo fui visto como estranho. Não me sentia estranho, mas depois de muitos anos a viver com esse rótulo começou a ficar difícil não acreditar nele. E os filmes ajudaram muito", admite. Só que, precisa, "lá porque uma pessoa parece estranha e as pessoas pensam que ela é estranha, não quer dizer que não seja emocional e profunda. Que não seja, sei lá, como toda a gente".

E como escreveu o crítico do "The New York Times" Ken Johnson, "a carreira de Tim Burton é a derradeira vingança do ‘nerd'. Burton, o filho alienado de uma família disfuncional de Burbank, Califórnia, que decantou a sua solidão, dor, angústia e mágoa desenhando ‘cartoons', encontrou a fama, fortuna e uma bela companheira (Helena Bonham Carter) contando histórias cinemáticas de outros inadaptados sensíveis que ora triunfam ora sucumbem num mundo de reprimida mediocridade".

A tese do MoMa

Nos EUA, os críticos contorcem-se, lutando contra o desejo de classificar como arte esta obra gráfica de Burton, num debate para já inconclusivo sobre a nova incarnação do cineasta gótico como surrealista pop. Essa é a tese de Ron Magliozzi, o curador do MoMa que começou a organizar a exposição como um comissário de cinema e que no final percebeu ter de trabalhar como um comissário de artes plásticas. Tim Burton tem a mesma formação e trabalha a partir das referências que a geração Surrealista Pop sua contemporânea, de Edward Gorey, Ralph Steadman, Edward Sorel e o famoso Big Daddy Roth, cartoonista criador do Rato Fink, nenhum dos quais representado ou mencionado na exposição.

"A evolução do fenómeno do Surrealismo Pop (também conhecido como Lowbrow Art) coincide com o período de quarenta anos da infância e carreira profissional de Burton e é um apropriado ponto de referência", escreve Magliozzi. "O Surrealismo Pop germinou no Sul da Califórnia no final da década de 60, quando um grupo diverso e disperso de ilustradores e pintores virou as costas à tradição da arte abstracta e conceptual em favor de formas de expressão representativas. Inspirados pelos mais acessíveis e divertidos objectos da cultura popular - carrinhos de corrida, tatuagens, ‘pinups', livros de banda desenhada, bonecos de plástico, filmes de monstros e ficção científica, animação e música alternativa -, pintores como Robert Williams lançaram a fundação para um novo tipo de arte contemporânea que era uma alternativa à ementa habitual de museu. Este era o mesmo ‘ethos', delicioso e sombrio, que Burton tinha começado a explorar sozinho enquanto adolescente, e também aquilo que é distintivo nos seus filmes e projectos pessoais e facilmente reconhecido nos seus desenhos e pinturas."

A linha do terror

Burton não tem pruridos em mostrar os seus desenhos nem nenhumas pretensões. Aos jornalistas, recordou a sua ("mindblowing") experiência no Instituto de Artes da Califórnia, quando se apercebeu de que "não sabia desenhar direito".

"Estávamos numa aula de Desenho num mercado, e eu só pensava: ‘Não consigo fazer isto, não consigo desenhar como eles querem.' Então senti a minha mente a expandir, literalmente. Foi muito estranho, e não havia drogas envolvidas. A partir desse momento decidi que me ia borrifar, ia fazer só o que me apetecesse. A escola não fez de mim um grande artista ou desenhador, mas fez-me seguir o meu caminho."

É na secção que os curadores designaram como "Embelezar Burbank" que vemos esses desenhos de estudante no CalArts, fundado pelos irmãos Walt e Roy Disney e para o qual Tim ganhou uma bolsa de estudo aos 18 anos. Ali estão uns desenhos que mostram como o seu traço está longe da perfeição do cânone académico clássico. E estão os que podem ser o prólogo das suas futuras personagens: os "aliens", os esqueletos, os "robots", os palhaços, os fantasmas e todos os homens, mulheres, bichos e mobílias que se tornam disformes, mutantes.

Outra das coisas que a exposição torna óbvias é que Burton nunca transpõe a linha do terror. Ele quer-nos impressionar, provocar e desafiar, mas não nos quer aterrorizar. Os seus monstros maravilham-nos, não nos metem medo. Podem ser horripilentos, mas dificilmente são maus; são sempre uma materialização de qualquer emoção com que nos identificamos. Há energia e destruição, mas também ternura e sedução. Ele sabe ser perverso sem deixar nunca de ser adorável.

Tim Burton estudou profundamente o humor e a comédia tanto como género literário como enquanto linguagem visual. Nas suas notas encontramos uma lista do tipo de piadas no humor americano - 1) Étnicas, 2) Truz-truz, 3) Insultos, 4) Histórias, 5) Uma linha, 6) Piadas cruzadas, 7) Poemas, 8) Limericks [composições de cinco versos], 9) Práticas, 10) Ligeiras, 11) Humor doentio, 12) Piadas com elefantes, 13) Trocadilhos -, que investigou. Também há uma lista com os filmes de terror de que gosta, com 54 entradas, mas é a comédia o terreno onde se move como escritor. O seu humor é sombrio, mas é divertido e, em última análise, redentor. Mesmo quando a história não tem final feliz.

Os seus contos (em BD, em poesia e em filme) envolvem criaturas bizarras em cenários soturnos, mas isso é só estilo. São ainda como as fábulas que sempre conhecemos, só que são modernos. E como essas histórias que outrora nos adormeciam e nos encantavam, têm como único objectivo entreter-nos. "O que me impressiona é como ele é capaz de explorar os nossos medos mais negros e profundos de uma maneira em que o que sobressai é o humor e a humanidade em todos nós", sublinhou o director do MoMa Glenn Lowry.

A arte explica os filmes

Burton esquissa e até gatafunha compulsivamente. Perdido numa das paredes está um exemplar amarelecido de uma primeira página de um "Los Angeles Times" coberto por rabiscos do realizador. Mas a maior parte dos desenhos claramente tem por trás horas de trabalho: de estudo, de composição.

"Os desenhos dão-me uma sensação de paz e sossego. Eu não sou uma pessoa particularmente verbal e por isso o desenho é uma boa forma de comunicar, com os outros e às vezes comigo próprio, uma boa maneira de entender melhor alguma coisa, o que quer que seja. É uma coisa até terapêutica. E às vezes é a semente de um novo filme, e às vezes não é. Mas é sempre onde tudo começa", explica.

Podemos ver como são, de facto, meticulosos os seus desenhos em cada um dos quadrados dos vários "storyboards" de "Hansel e Gretel", "Vincent" ou "The Nightmare Before Christmas". E podemos ver que Burton não desenha só por trabalho: temos inúmeros "Miscellaneous", desenhos que talvez tenham a ver com os seus interesses, as suas opiniões, as suas fixações do momento. Um retrato do Presidente Reagan engolindo a própria boca. Um Ramone arrastando desanimado a sua "punkidão". Uma série que poderia ter dado uma colecção tenebrosa de "greeting cards" para o Dia dos Namorados - "Two People Enjoying Each Other" mostra um homem e uma mulher literalmente a comerem pedaços um do outro; "Sue and John Like To Hold Hands" apresenta os dois a carregarem mãos decepadas.

As primeiras recensões acusam os comissários do MoMa de uma selecção demasiado repetitiva. É verdade, mas é a repetição que nos dá conta da tal marca distintiva da sua imaginação "inquieta", "desassossegada", da sua estética, dos "motivos e traços estilísticos do seu trabalho: a sua noção de  personagem como uma criatura, o recurso às máscaras e à modificação do corpo, a exploração da relação entre ‘teenagers' e adultos"...

Como escreve Ron Magliozzi no catálogo, "ao examinarmos a sua linguagem gráfica, torna-se claro que os triângulos e círculos de Burton são símbolos de perigo e perda". Igualmente, "as figuras de palhaços, marionetas, abóboras e corvos, a repetição visual de riscas, ponto de interrogação e cores primárias que aparecem por todo o seu trabalho são a manifestação da sua sensibilidade carnavalesca".

São também as centenas de estudos - Burton é, de facto, prolífico - que nos recordam a impressionante galeria de personagens dos seus filmes: Pee-Wee, Vincent, Big Fish, Sweeney Todd, Jack e Sally, o Joker, a Catwoman e o Pinguin de Batman, e talvez a sua obra-prima, Eduardo Mãos de Tesoura. E o que disse ao Ípsilon o comissário da exposição faz sentido - olhando para os retratos dos personagens, "é a arte que explica os filmes" e estes, lá em baixo nos auditórios Roy e Niuta Titus, "são secundários".

Para Tim Burton, os desenhos são o primeiro passo na criação não só do visual como do próprio carácter das suas personagens cinematográficas. São tudo o que eles virão a ser na tela da sala de cinema. Nós, como espectadores, vemos o processo ao inverso: Johnny Depp é o Eduardo "original", e aquela figura desenhada a preto e branco só nos vem confirmar como sim, ele é perfeito, porque é só Johnny que vemos, nos olhos esbugalhados do esquisso, no manequim que veste o complexo e já gasto fato de couro, borracha, resina e metal que pesa mais de vinte quilos.

Finalmente, a exposição torna óbvia o tipo de disciplina e envolvimento - ou melhor, de obsessão e controlo total - que Burton tem com cada um dos seus filmes. Curiosamente, é quando somos confrontados com o trabalho dos seus mais fiéis colaboradores que nos apercebemos disso. Nós já sabemos que Burton não faz tudo sozinho e podemos ver as incríveis marionetas de Ian Mackinnon e Peter Sounders, a música original de Danny Elfman, o rebuscado trabalho de guarda-roupa de Colleen Atwood, os efeitos especiais de Stan Winston e o design de Carlos Grangel. Mas no meio da parafernália, marionetas, adereços e máscaras, há esta carta, uma nota enviada para o seu actor principal antes de começar a filmagem: "Johnny, esta noite pensei numa deixa para quando tu entras na sala do chocolate, qualquer coisa como: ‘Tudo nesta sala é comestível. Até eu sou comestível, mas isso chama-se canibalismo e não é aceite na maior parte das sociedades', diz-me se isto soa bem" - sim, imagina-se a resposta, porque foram rigorosamente essas palavras que saíram da boca de Willy Wonka na cena de "Charlie e a Fábrica de Chocolate".

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