Annemarie Schwarzenbach: vida em confusão, fotografia em devaneio

Foto

Fotografou, foi fotografada: em 34 anos, a suíça Annemarie Schwarzenbach foi tanto um sujeito como um objecto do século XX. Uma exposição no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, reconstitui agora as viagens (e a viagem) da vida dela

É um risco. E quem o correu não quer fazer apostas. Nem uma previsão sobre as superfícies impressas para onde mais tenderá o nosso olhar - se para as fotografias onde Annemarie Schwarzenbach foi fixada, se para as fotografias que Annemarie Schwarzenbach fixou. É a obra a deixar-se ofuscar pela imagem do seu criador. Nada que não se tenha já concretizado, nada que não se pudesse já antever em relação a esta viajante suíça, também fotógrafa e aprendiz de arqueóloga, mas sobretudo escritora compulsiva, que durante uma vida curta (morreu aos 34 anos) se dedicou ao romance, ao conto, à epístola, à poesia e à reportagem, algumas vezes sobre os outros, quase sempre sobre si, sobre os seus medos, angústias e contradições.

Esta ameaça de sombra (que também pode ser de brilho) não é nova. Emília Tavares e Sónia Serrano, as comissárias de "Auto-Retratos do Mundo - Annemarie Schwarzenbach, 1908-1942", a exposição que na segunda-feira abre portas no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, tiveram-na em conta e, no início do projecto, até ponderaram fugir dele, mas viram-se perante uma força icónica poderosa, difícil de contornar - os rostos de Schwarzenbach impuseram-se paredes meias com mais de uma centena de fotografias captadas pela sua Rolleiflex em geografias longínquas (do Afeganistão ao Congo Belga), durante tempos agitados (da Áustria ocupada pelos nazis aos EUA mergulhados na Grande Depressão).

O magnetismo da figura andrógina de Annemarie Schwarzenbach e o seu poder de sedução enquanto sujeito fotográfico já tinham sido experimentados no Verão de 1987, quando a revista suíça "Der Alltag" decidiu resgatá-la do esquecimento com uma série de artigos a que se seguiu a publicação de livros inéditos. Nessa altura, um retrato seu de 1930, estampado na capa de uma revista e em cartazes espalhados por Zurique, bastou para aguçar a curiosidade sobre quem teria sido e o que teria produzido aquele ser, cujo rosto se revelava tão desconcertante, simples e belo, cujo olhar se mostrava tão melancólico, profundo e sombrio. Schwarzenbach, habituada a conviver com máquinas fotográficas desde cedo por causa de uma mãe obsessiva com o registo da sua figura, parece consciente do frenesi encantatório da sua imagem. Sónia Serrano conta no catálogo da exposição que a escritora enviou a Claude Carrac (segundo secretário da delegação francesa na Pérsia, com quem manteve um casamento à distância) a fotografia que muitos anos mais tarde fez capa da "Der Alltag" com a dedicatória "Quelque ressemblance de Annemarie" ("Alguma semelhança com Annemarie") juntamente com "um provocatório texto sobre si" no verso do papel fotográfico. Consciente ou não desse poder, Annemarie Schwarzenbach sabia estar diante de uma objectiva, não a temia, deambulava à frente dela em poses sedutoras, que fazem lembrar sofisticadas produções de moda.

Perto do precipício

Primeiro, as passagens por Lisboa e pelas ex-colónias portuguesas. Depois as viagens por África, Médio Oriente e EUA. E depois a vida na Europa central. À medida que se foram acumulando os núcleos de fotografias captadas por Annemarie Schwarzenbach durante as suas viagens e se foram organizando documentos sobre a sua obra literária, cresceu a consciência de que faltava a imagem de uma viagem não menos importante, também fornecida pelos inúmeros retratos que fizeram de si - a viagem interior, um caminho que Schwarzenbach nunca parou de percorrer. Sónia Serrano em conversa com o Ípsilon: "Tendo ela esta força imagética era impossível não incluir fotografias suas enquanto tema da fotografia. Tem necessidade de ser fotografada. E tem a percepção do seu poder enquanto imagem fotográfica. Esta predisposição para a imagem está de alguma forma relacionada com a obra literária que produz - quase tudo fala sobre si, quase tudo gira à sua volta." Muito antes do poder da sua imagem, Annemarie passeou o seu poder de sedução em pessoa: para o Nobel da Literatura francês Roger Martin du Gard tinha um "belo rosto de anjo inconsolável"; a fotógrafa berlinense Marianne Breslauer, com quem trabalhou no início dos anos 30, disse que era semelhante a uma obra de arte, "estranha mistura entre homem e mulher"; depois de a conhecer, a escritora americana Carson McCullers admitiu que o seu rosto a perseguiria "para toda a vida".

Assim descrita, espalhando deslumbramento e erotismo, Annemarie Schwarzenbach - "um dos segredos mais bem guardados da literatura europeia", sublinha Carlos Vaz Marques no prefácio a "Morte na Pérsia" (ed. Tinta da China, 2008) - parece muito segura de si. É certo, no entanto, que a sua curta existência carregou intensas lutas interiores (tentativas de suicídio, constantes reabilitações por causa da dependência da morfina, homossexualidade reprimida pela família). A sua postura perante a vida, em constante vaivém, sempre perto de um qualquer precipício, em convulsão, reflecte em certa medida uma Europa mergulhada em "mal-estar", um continente que assistiu à ascensão do nazismo e logo a seguir à demência exterminadora por ele gerada. Annemarie é oriunda de uma família aristocrática, herdeira de um milionário negócio ligado aos têxteis. Numa sociedade conservadora, e perante uma mãe possessiva (os Schwarzenbach eram simpatizantes do regime nazi), manifestou a sua discordância com o rumo dos acontecimentos políticos revelando "ideias modernas e antimilitaristas". No início dos anos 30, deu início a um ciclo de idas e voltas que só teve fim quando morreu, em 1942, após complicações originadas por uma queda de bicicleta, em Sils, no sul da Suíça.

Terminada a formação académica em História, em 1931, Annemarie Schwarzenbach passou a dedicar-se cada vez mais à escrita. Apesar de uma produção relativamente vasta - se considerarmos o curto período em que sua obra fotográfica ganha efectivamente algum relevo -, a fotografia nunca foi o seu suporte de eleição e terá começado a interessar-se por ele por influência da mãe, fotógrafa compulsiva. A palavra (ou a simples sonoridade que potencia, como chegou a confessar) é o seu campo criativo favorito, mas o conjunto da obra fotográfica que produziu está longe de ser figura de corpo presente. "As imagens que Schwarzenbach foi produzindo nas viagens ao longo da sua vida gizam trajectos marginais de entendimento da fotografia muitas vezes de forma completamente solitária", escreve Emília Tavares, para quem a fotografia da autora "não se enquadra em nenhum género, não segue nenhum movimento e é difícil de catalogar". As motivações para ter pegado na Rolleiflex são variadas e vão do registo documental, de testemunho ou denúncia, à contemplação prazenteira e à mais pura deambulação sem objectivo concreto, uma errância visual que condiz mais com o espírito de viajante do que com o de turista (Annemarie criticou sempre o "sightseeing").

Portugal, o fim da aventura

Foi uma viagem de trabalho ao Norte de Espanha, em 1933, com a fotógrafa berlinense Marianne Breslauer, que marcou o início de uma apropriação mais consequente da fotografia. Além de dar relevo à inevitável faceta literária de Annemarie Schwarzenbach na sua mais complexa teia de estilos e géneros, a exposição do Museu Berardo procura identificar as particularidades e a relevância criativa da imagem fotográfica no conjunto da obra da autora suíça. No que respeita à fotografia, o percurso será orientado através de quatro grandes núcleos - Médio Oriente, Fascismos, EUA e África - que correspondem a diferentes abordagens formais, muito condicionadas por diferentes estados de espírito da autora, influências criativas e tempos históricos em rápida mutação.

Quando regressou da primeira viagem ao Médio Oriente, para onde partiu em 1933 a fim de participar em escavações arqueológicas na Turquia, na Síria, no Líbano, na Palestina, no Iraque e no Irão, todas as imagens que trouxe na bagagem eram já da sua autoria. Nestas fotografias, tentou fugir ao exótico e procurou apreender as culturas que a rodearam. "É uma fotografia que não mostra o habitual postalinho", diz ao Ípsilon Emília Tavares. Por esta altura, concretizou algumas reportagens (fotográficas e escritas) em que tentou denunciar as alterações económicas e sociais que as expedições ocidentais estavam a provocar nas populações locais, num difícil compromisso entre tradição e progresso. Na última viagem ao Médio Oriente (de carro, na companhia de Ella Maillart, outra viajante compulsiva) mantêm-se as imagens que remetem para a "ancestralidade dos lugares" mas desta vez num estilo mais "acutilante e informativo" e, ao mesmo tempo, mais "errático", fruto de uma negação da velocidade a que já se produziam as imagens. São do Médio Oriente a maior parte das fotografias que hoje dão corpo ao espólio depositado nos Arquivos Literários Suíços. São também as mais conseguidas. "O simbolismo da paisagem, a constatação das mudanças políticas e sociais, a importância da religião e dos lugares sagrados, o fascínio pela liberdade e respeito pela dureza do nomadismo" constituem, grosso modo, os assuntos a que deu mais atenção.

Em fuga de mais uma temporada de entradas e saídas em clínicas de desintoxicação, tentando ultrapassar equívocos e dramas de amor, Schwarzenbach partiu em Agosto de 1936 para os EUA a convite da fotógrafa Barbara Hamilton-Wright. A ideia era fazer um conjunto de reportagens sobre as populações mais carenciadas no Sul do país, a braços com uma crise social e económica sem precedentes, a Grande Depressão. É o trabalho fotográfico onde revela mais objectividade e realismo e no qual concentra quase todos os recursos criativos (tinha deixado de lado a literatura e investiu nas reportagens). Nos EUA, conhece Roy Striker, economista, fotógrafo e um dos ideólogos da nova fotografia norte-americana de reportagem, materializada no projecto da Farm Security Administration. As abordagens marcadas por grandes planos da miséria social, das condições de trabalho e de paisagens áridas, numa fotografia "comprometida", de denúncia, acabam por influenciar a sua prática na época. É o seu trabalho fotográfico mais "classificável", mais colado a um género e a uma estética realista, em que os rostos e as pessoas assumem um protagonismo que acabará por influenciar futuros registos.

Quando, na Europa Central, o nazismo começou a exportar definitivamente os seus tentáculos para fora da Alemanha, Annemarie regressou a casa, na Suíça, e começou a aperceber-se do clima de opressão e desvario que se preparava. Na Primavera de 1938, foi até Viena, numa altura em que a cidade já estava transformada num palco de propaganda nazi. Fotografou "a arrogância da pose dos oficiais, os recrutamentos, as paradas obrigatórias, a manipulação de toda a população pela fome e pelo desemprego". Os comentários que escreveu no verso das fotografias (um exercício de micro-narrativa que cultivou noutras ocasiões) são claros na condenação de uma espiral de demência ideológica e militar.

As comissárias decidiram juntar a este núcleo as escassas fotografias que Annemarie tirou em Portugal, em 1941 e 1942. É uma provocação e um contraponto à lucidez crítica que a autora demonstrou na Áustria: reportagens que mostram Lisboa ora carregada de estereótipos, ora trabalhando em prol dos interesses suíços no único porto livre do Atlântico, em plena II Guerra Mundial. "Mais do que as imagens que tirou, o que marca a passagem de Annemarie Schwarzenbach por Portugal são as imagens que não tirou", sublinha Emília Tavares. Os artigos feitos por encomenda da embaixada da Suíça em Lisboa são revistos por mais do que uma entidade de censura e parte das fotografias publicadas são fornecidas pelos serviços de propaganda de Salazar. "Razões pessoais e políticas terão estado na origem deste olhar tão diverso [para uma e outra ditadura], mas não deixa de ser significativo que Portugal tenha conseguido, em plena II Guerra Mundial, manter uma máquina de propaganda eficaz, e muito semelhante às de outros países. A imagem de país 'paraíso' e único estado europeu em progresso foi sendo instaurada interna e externamente".

Foi de Lisboa, a bordo do navio Colonial, que Annemarie partiu rumo a África para as suas derradeiras viagens pelo mundo na tentativa de um recomeço. Antes de chegar ao Congo Belga (actual República Democrática do Congo), fez escalas na Madeira e em S. Tomé. Em pleno coração de África, foi ao encontro de um casal de suíços que explorava a maior plantação do país. Passou um mês a deambular pela região com a senhora Vivien, e essa nova geografia deu-lhe alento para escrever e fotografar. Fez imagens num registo muito próximo da linguagem visual antropológica do século XIX e não foi capaz de esconder o "preconceito da superioridade da civilização ocidental". "Se no Médio Oriente as imagens são o cerne de um questionamento complexo entre a representação ocidental dessa cultura e um desejo de desafiar essa constante secular, já nas viagens a África, tanto na escrita como nas imagens, encontramos enraizada e muito questionada uma ideia de 'colonialismo' e da sua representação", escreve Emília Tavares.

Antes de regressar à Suíça, ainda passou por Marrocos onde se encontrou pela última vez com o marido. Tencionava pedir-lhe o divórcio, mas arrependeu-se.

Diz-se que depois do fatídico Verão de 1942, Annemarie pretendia estabelecer-se em Portugal. Henri Martin, embaixador da Suíça em Lisboa e amigo de longa data, convidou-a a ficar na capital portuguesa como correspondente do jornal "Neue Zürcher Zeitung". A própria admite a ideia numa carta a Ella Maillart: "Talvez regresse a Portugal para viver no campo (...)". Podia ter sido o lugar escolhido para continuar a procurar aquilo que nunca encontrou. O lugar escolhido para o fim da aventura. Não podemos saber.

Sugerir correcção
Comentar