Do museu a céu aberto para o Museu Berardo - Os Gémeos

Foto
A exposição está no Museu Berardo até 19 de Setembro Pedro Cunha

É um momento marcante. Pela primeira vez um museu em Portugal recebe uma exposição de artistas oriundos do graffiti. Na segunda-feira, é inaugurada, no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, Pra Quem Mora Lá o Céu É Lá, da dupla brasileira Os Gémeos. Começaram no final dos anos 80 e agora são disputados por galerias de todo o mundo.

É possível que já tenha passado por criações da autoria deles, nas ruas de São Paulo, Berlim, Londres ou Nova Iorque. São fáceis de identificar. Normalmente são cenas etéreas povoadas de amarelos e roxos, com olhos inocentes, crianças de pernas franzinas e cabeças enormes, inscritas em murais de grandes dimensões, em prédios devolutos. É difícil não fixar essas imagens pictóricas. Pela escala, poesia e forma como interagem com o espaço envolvente. Criam um clima de romantismo na desordem urbana.

A dupla brasileira Os Gémeos, os irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo, 35 anos, são duas das figuras mais importantes do graffiti, ou arte de rua. Nos últimos anos já não criam apenas nas artérias das grandes cidades. São também solicitados para expor em galerias, bienais, museus. É isso que acontece agora no Museu Colecção Berardo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Na segunda-feira é inaugurada a exposição Pra Quem Mora Lá o Céu É Lá, naquela que é a primeira grande exposição em Portugal de artistas vindos do graffiti, num espaço museológico institucional.


A transposição da rua para as galerias de arte não é novidade. Keith Haring ou Jean-Michel Basquiat, já falecidos, ou os contemporâneos Barry McGee e Banksy, fizeram-no. Mas nos últimos tempos tem-se assistido com mais frequência ao fenómeno. A mostra efectuada há dois anos pelo mais influente museu de arte contemporânea da Europa, a Tate Modern, para a qual Os Gémeos contribuíram com um dos murais gigantes expostos no exterior, ajudou a credibilizar uma série de artistas.

Gustavo Pandolfo não gosta de falar de transição para a galeria. "São simplesmente coisas diferentes", argumenta. "Quando se tira o graffitida rua, que é de onde o vimos, deixa de ser graffiti. O lugar dele é na rua. Separamos bem as coisas. O que fazemos na galeria é diferente. Em performance é outra. Em desenho animado é outra. O graffitié apenas uma ramificação do nosso trabalho."

A arte de rua ainda é apreendida a velocidades diferentes. Sendo alvo de interpretações diversas. Nos últimos anos, o recurso indiscriminado ao tagging (assinaturas estilizadas feitas em spray), que inunda as paredes de muitas cidades, relançou o debate sobre as fronteiras entre vandalismo e arte. É uma discussão sem respostas fáceis. Os limites do que é ou não é arte não são um exclusivo dograffiti. É uma questão quase sempre em aberto também no universo codificado do mercado da arte.

Traição ao espírito da rua?


"É pequeno olhar para o graffiti como vandalismo", argumenta Gustavo, "quando temos a Grécia em convulsão ou um navio a poluir quilómetros de oceano nos EUA." E continua: "Temos tantos problemas para nos preocupar por aí. O graffitié apenas pessoas a dizer: "Estamos aí. Queremos contribuir para a mudança. Vamos lá!"

Do lado do graffiti há quem veja a passagem para a galeria como traição ao espírito da rua. Do lado do mercado da arte, apesar da maior aceitação, ainda se olha com alguma desconfiança para estes artistas. "Dos curadores não sinto que exista preconceito", contrapõe Gustavo. "O que interessa é o trabalho em si. Foi isso que nos abriu portas. O estilo. A linguagem. O que transmitimos."

Há realmente uma mudança. Artistas como o misterioso Banksy ou o português Alexandre Farto (mais conhecido por Vhils), que tem ganho visibilidade nos últimos tempos em Londres, são disputados por galerias e museus. "Eles estão de olho em novos artistas que vêm com essa bagagem da arte de rua", diz Gustavo.

"É natural. Isso é ensinado nas universidades hoje. O graffiti tem uma força enorme. Não tem como tapar os olhos e dizer que não existe. Está aí fora, os jovens estão-se manifestando através dele. Não pode ser ignorado. A gente conseguiu uma coisa boa no Brasil, que é tratar o graffiti como forma de expressão artística. Apagaram muitos, mas conseguimos reverter isso, fazendo com que políticos percebessem que é importante preservar também."

Na actualidade, o traço lírico e delicado dos Gémeos circula por todo o lado, mas tudo começou em Cambuci, São Paulo, distrito na região central da cidade brasileira, abrangendo os bairros da Aclimação, Morro da Pólvora e Vila Deodoro, espaços habitacionais da classe média, grandes prédios verticais.

Foi ali que, no final dos anos 80, enquanto se embrenhavam na cultura hip-hop local, Otávio e Gustavo Pandolfo começaram a gastar a semanada em latas de spray para pintar os muros circundantes. Sempre a dois. "Dividimos tudo, desde sempre. Desde a barriga da nossa mãe. Até desenhávamos no mesmo papel quando éramos pequenos. Ainda acontece isso."

Em São Paulo, no meio da desordem urbana, da violência, do trânsito caótico, os seus murais pictóricos criavam um universo paralelo, lúdico, fantasista. "Essa, sim, foi uma transição", afirma Gustavo, "fugir da realidade, fugir de São Paulo."

"Criar esse universo foi a nossa forma de fazer um lugar onde nos pudéssemos sentir mais confortáveis, onde pudéssemos viajar."

Trabalhos inéditos

O objectivo foi completamente conseguido. Simbolicamente e literalmente. A rua está cada vez mais distante. "Mas desde que exista um lugar interessante para fazer coisas a gente faz", diz Gustavo. "É verdade que hoje o nosso trabalho é mais direccionado para a galeria. Mas nunca se sabe. Não pensámos chegar aqui, precisamente porque nunca planeámos nada."

A última vez que estiveram em Lisboa foi em 1999. Na altura, chegaram a colorir uma parede e contactaram com a cena local de graffiti. Agora a primeira impressão é que a cidade está transformada. "Ainda não deu para ver muito, mas deu para perceber, só do caminho do aeroporto para aqui, que há muita coisa. A cidade está mais vibrante. Fomos vendo coisas e percebe-se que aqui as pessoas estão muito activas", reflecte.

Até 19 de Setembro, a exposição do Museu Berardo apresenta uma selecção das obras mais mediáticas da dupla e uma série de trabalhos inéditos que foram produzidos no próprio local. Cada projecto é pensado como instalação, misturando pinturas realizadas directamente sobre paredes, telas e esculturas. "Algumas peças vieram do Brasil, Nova Iorque e Milão", diz Gustavo. "Mas quando chegaram a Lisboa a gente as transformou, adaptando-as ao espaço. Outras foram feitas aqui. Gostamos de olhar o espaço e improvisar."

O improviso é, aliás, característico na maneira como interagem, entre os dois, e com o espaço. "A rua permite jogar com o inesperado. Nunca se sabe o que pode acontecer. A galeria é diferente, mas também improvisamos. Há um espaço em branco onde é possível fazer uma coisa mais concreta, elaborada e equilibrada em termos de instalação, luz, escultura e música.

Ao longo dos anos foram diversificando a sua actividade. As exposições reflectem-no, misto de graffiti, esculturas, objectos, fotografias e design gráfico. Diz quem já os viu criar que improvisam, cada um para seu lado, e no final vislumbra-se uma obra uniforme, que dir-se-ia concebida apenas por um deles.

As suas criações contemplam visões do quotidiano, cenas simples mas sensualmente ricas, evocações dos esquecidos das margens da sociedade ou retratos comoventes de famílias. É um imaginário sonhador e intimista, às vezes burlesco e possuído pela crítica social, aquele que por norma propõem.

Quando interrogamos Gustavo sobre o que os inspira, a resposta surge em rajada: "O nosso trabalho reflecte as vivências, o olhar, os sonhos, as histórias, os relacionamentos familiares, a poesia, a música, a comida, o folclore do Brasil, o silêncio, pessoas que vivem com salários de miséria mas estão sorrindo, tudo isso é filtrado."

É caso para dizer que a arte de rua, durante décadas desvalorizada, já não se move apenas no maior museu a céu aberto do mundo, a rua, mas também nos espaços museológicos que, durante anos, tinham reticências em aceitá-la. Nunca como no contexto actual as técnicas dograffitipareceram tão próximas das dinâmicas regulares da arte contemporânea. Na rua, ou na galeria, o traço pictórico lúdico que Os Gémeos colocam na sua actividade é reconhecido, tem identidade, projectando ideias que tornam a vida mais interpeladora. Se isso não é arte é o quê?

Sugerir correcção
Comentar