Debaixo do vulcão

Foto
Sem Título (1968)

Em Ponta Delgada, o Museu Carlos Machado antecipa a antológica de Ana Vieira que em Janeiro chega à Gulbenkian. A primeira grande exposição da artista desde Serralves, há doze anos. Vamos ver através de muros

Às vezes é preciso ir aos sítios para perceber. Por exemplo, a influência dos muros de basalto por entre o verde vivo dos campos e o azul-céu dos maciços de hortênsias nos Açores.

Ao fundo e a toda a volta um mar denso e escuro. Chumbo derretido que o sol, quando aparece, transforma num manto prússia, aparentemente mais sólido do que líquido. Depois, há os picos montanhosos. E, sobre eles, a engoli-los, um tecto baixo de nuvens gordas e pesadas, prestes a desfazerem-se sobre nós. Encosta acima, sempre a subir, os pastos e plantações bordejados a aloés e cortados por empilhamentos de pedra negra sobre pedra negra feitos à mão ao longo de décadas. Ou, não tanto pedras, antes meteoritos que a terra um dia cuspiu cá para fora em fogo e que o homem aprendeu a usar em seu favor.

Para Ana Vieira esses muros foram uma experiência fundadora. "Em São Miguel, quando chegava a casa vinda da escola, a primeira coisa que me apetecia fazer era ir passear para uma zona de plantação de vinha. Ia buscar um molho de chaves e dirigia-me à parte da propriedade mais próxima do mar. Nessa zona existiam grandes muros de pedra, muros de abrigo que protegiam a vinha da maresia. Dividiam o terreno em compartimentos. Todos os dias fazia esse percurso. Para mim foi uma vivência marcante e com certeza uma das mais interiorizadas."

Aberto e fechado

Há uma dimensão fundamental da obra da artista que se insinua aqui, nesta experiência, e nas palavras que se lhe seguem: "Absorvi esse espaço, a ambiguidade de ser simultaneamente aberto e fechado, e ainda o facto de haver passagem, de implicar tempo, cadências e percursos."
Quase nada na obra de Ana Vieira nos é oferecido de mão estendida; quase tudo surge velado, quase tudo está por trás de uma porta, de uma parede, de um biombo ou das vidraças de uma janela; quase tudo se insinua como sombra ou reflexo especular, como projecção fugaz de luz, como mero recorte no espaço, como negativo e ausência; quase tudo é entrevisto, mais do que visto; quase tudo faz de nós "voyeurs", mais do que espectador. 

Uma Vénus sobre o seu plinto fechada dentro de uma redoma de cortinas translúcidas fechadas dentro de um círculo de cadeiras fechadas dentro de nova redoma de cortinas que escondem tanto quanto revelam, que convidam a entrar ao mesmo tempo que impedem passagem ("Ambiente", 1972).

Um conjunto de fotografias expostas nas costas de uma sequência de painéis brancos e que podemos ver apenas inclinando-nos, espalmando-nos e contorcendo-nos, acedendo, mesmo assim, a não mais do que miragens parcelares sobre espelhos ("Close Up", 2004).

Uma sequência de frases impressas em letras tão pequenas que exigem uma lupa para que se nos revelem ("Atravessar o visível", 2008). Outra sequência que cresce e ganha dimensão no espaço apenas quando sobre elas fazemos incidir uma lanterna ("As Chaves", 2008).

Paulo Pires do Vale, comissário da exposição "Muros de Abrigo", até 12 de Setembro no Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, e que em Janeiro chega a Lisboa, ao Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (em versão revista e ampliada), fala daquilo que define como "dupla polaridade".

Saímos da Igreja do Colégio dos Jesuítas, onde hoje funciona o museu. Lá dentro, a talha barroca deixada por dourar e os painéis de azulejos setecentistas confrontam-se agora com a poética de depuração de uma das mais conhecidas instalações de Ana Vieira ("Projecto Ocultação/Desocultação", 1978-2010 - a planta de uma casa traçada no chão apenas com tijolos onde, de novo, parecemos ser incitados a entrar sem que nenhum verdadeiro acesso nos seja oferecido, obrigados a ver de fora, em permanente exterioridade). Com o catálogo na mão, lemos: "Um muro, por mais sólido que seja, é sempre uma membrana [...] Com ou sem portas, indicia sempre um outro lado. Conhecido ou não. É esse outro o que anuncia na ocultação. Mesmo que nunca revelado. [...] A existência de um outro lado do muro re-situa-nos: o reverso do reverso é onde estamos."

A listagem é deste comissário que só nos Açores ficou a conhecer a memória de infância de Ana Vieira a partir da qual construiria a narrativa da primeira grande exposição museológica da artista desde Serralves, há doze anos: "Interior e exterior, presente e ausente, visível e invisível, ver e ser-visto, acessível e inacessível, atravessamento e opacidade, público e privado..."

Eis aquilo a que ele chama "o palco da obra de Ana Vieira" - isto: "A apresentação de uma crise."

Nada de novo, aqui. A obra de Ana Vieira desde sempre se viu associada a uma ideia de crise ou perda. Mais frequentemente, porém, essa noção foi pensada no sentido de uma crise da pintura (desde sempre tornada espaço tridimensional por Ana Vieira) ou de uma falência dos sistemas de idealização do corpo feminino e do papel da mulher e dos espaços - invariavelmente domésticos - da sua actualização. Assim, as casas que povoam a obra desta artista seriam presenças assombradas, metáforas espaciais, invariavelmente fantasmáticas, de uma identidade de género em défice. Aqui, contudo, a estranheza do sentimento de que algo se perdeu, ou nunca existiu, surge mais associada à ideia de um vazio ontológico e sem género, associada à ideia de que, efectivamente e sem fuga possível, todos somos falha, ausência.

Em Junho, na altura da inauguração de "Muros de Abrigo", o encenador Jorge Silva Melo, que realiza um documentário sobre Ana Vieira, esteve em Ponta Delgada para uma leitura da "Carta aos Actores", do dramaturgo francês Valère Novarina. Foi Novarina quem disse: "Somos carne em roda de um buraco [...] o buraco não está à nossa frente (como um túmulo, por exemplo, onde seria preciso cair um dia para pôr um fim), mas em nós, mas dentro [...] não somos os que têm o nada como futuro - é essa a sorte dos animais - mas os que levam o seu nada no interior."

Num dos andares superiores da Igreja do Colégio há uma presença masculina que parece precipitar-se sobre nós, correndo velozmente na nossa direcção. Não é nada, ou pouca coisa. Apenas o espaço entre duas tábuas recortadas na forma de homem ("Sem Título", 1968).

"A ambiguidade de ser simultaneamente aberto e fechado", diz Ana Vieira: este homem que se desfaz quando o olhamos de perto, apenas ilusão óptica é um exemplo. Mas na sua obra desta artista essa liminaridade, esse não ser exactamente isto nem aquilo, esse estar entre, sendo várias coisas sem ser nenhuma, surge, contudo, sob muitas formas.

Numa das suas mesa-paisagem dos anos 1970 há um lugar preparado para a refeição. Um prato e um copo, garfo, faca, guardanapo. É na metade amarelo-areia da toalha. A outra metade é azul e branca, como um mar encrespado no qual um barco à vela parece navegar. Depois, os limites da mesa deixam pender a paisagem sobre o vazio. Como uma ilha, simultaneamente aberta ao mundo e fechada sobre si mesma.
A descrição de Ana Vieira sobre os percursos que fazia em criança, nos terrenos da família, a atravessar portas abertas uma após outra com um molho de chaves, acaba numa pequena frase: "A última porta dava para o mar."

A total abertura feita ensimesmamento máximo. Ou vice-versa.

O Ípsilon viajou a convite do Museu Carlos Machado e da Direcção regional do Turismo dos Açores

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