O bilhete de identidade de Catarina Branco

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FERNANDO RESENDES

Catarina Branco pertence a uma geração que não necessita de renegar aquilo que construiu a identidade da mulher durante séculos para se afirmar. Pelo contrário. No seu trabalho, esta identificação feminina - um certo estereótipo colado aos “crafts” realizados por mulheres: as rendas e bordados, o trabalho têxtil, a doçaria conventual, a confecção de adornos litúrgicos em papel e escama de peixe - subjaz à reflexão sobre a identidade açoreana que a sua obra convoca. O Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, continua a abrir-se à arte contemporânea

Catarina Branco (n. 1974) conta sempre uma história quando está a falar desta exposição. Diz ela que, em criança, passava muito tempo com a avó na aldeia de Fenais da Luz, na costa norte da ilha de São Miguel, Açores. Fenais da Luz possui uma estrutura urbana característica, com as casas que dispostas em círculo em torno da igreja. Os avós de Catarina produziam vinho, e a avó, muito religiosa, ocupava-se das coisas da igreja local. Quem conhece bem os Açores sabe que as festas religiosas são uma explosão de cor: os caminhos enchem-se de tapetes feitos de pétalas de flores, os andores das procissões ornamentam-se com enfeites de papel recortado, e existe toda uma iconografia ligada à religiosidade que permanece viva nas tradições locais. Catarina Branco, em criança, ajudava a avó nos recortes de papel de seda colorido que a senhora gostava de fazer. Mais tarde, já formada pela ESBAL e a viver nos Açores, uma intolerância às substâncias químicas presentes nas tintas impediu-a de pintar durante uma temporada. Lembrou-se então dos recortes de papel da sua infância e decidiu mudar de técnica. "Passei a desenhar com a tesoura, a cola e o papel colorido", diz.

E foi com estes recortes de papel colorido que o público português pôde ver a sua obra em ocasiões pontuais. Uma exposição na Fonseca Macedo, de Ponta Delgada, em 2010, e a inclusão de peças suas nas representações que esta galeria tem trazido nos últimos anos à feira de arte de Lisboa aguçaram a curiosidade sobre o processo que fundamenta o seu trabalho e os laços de afinidade e distância que ele pode, ou não, estabelecer com obras de outros artistas. É certo que existe uma qualidade feminina nas grandes colagens de Catarina Branco, e que lhes advém de um certo estereótipo colado ainda hoje aos "crafts" tradicionalmente realizados por mulheres: as rendas e bordados, que recordam certos tipos de papéis que usa, o trabalho têxtil, a doçaria conventual, e a confecção de adornos litúrgicos em papel e, no caso açoreano, escama de peixe. Mas essa qualidade, se é assumida no trabalho desta artista, nunca é criticada: Catarina Branco pertence já a uma geração que não necessita de renegar aquilo que construiu a identidade da mulher durante séculos para se afirmar. Pelo contrário. No seu trabalho, esta identificação feminina subjaz à reflexão sobre a identidade açoreana que a sua obra também convoca.

Memória

Posto isto, há dois anos Catarina candidatou-se a uma bolsa de criação artística criada pelo museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, com o apoio da Secretaria Regional da Cultura dos Açores. O júri, que tinha vindo do continente para o efeito, não teve dúvidas em atribuir-lhe o prémio, que lhe permitiu conceber esta exposição em todos os seus pormenores. O Museu Carlos Machado é um museu como há tantos outros no país, com colecções ecléticas que vão da arte à etnologia e aos brinquedos. Localizado no antigo convento de Santo André, está há tempos encerrado para obras, mas recuperou dois outros espaços na cidade que destina ao núcleo de arte sacra (Igreja do Colégio dos Jesuítas) e a exposições temporárias (Recolhimento de Santa Bárbara). São estes dois edifícios que o director do museu, padre Diogo Melo, reservou para a exposição "Fez-se Luz", de Catarina Branco (até 31 de Março), no seguimento de outras de arte contemporânea que também tem apoiado, como a grande colectiva de Ana Vieira que esteve no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, em 2011, "Muros de Abrigo'.

A antiga igreja dos Jesuítas possui todas as características dos templos desta ordem: grande, com um salão único de vastas dimensões, ostenta uma cabeceira inteiramente coberta de talha em madeira que a expulsão da ordem pelo Marquês de Pombal, em 1759, impediu de dourar. A inquietante característica inacabada do lugar combina com a efemeridade das peças da artista, e sobretudo com uma grande cruz desenhada no chão segundo os métodos tradicionais dos tapetes de flores, mas preenchida agora com "confettis" de carnaval, em vez das usuais pétalas de hortense. É que, recorde-se, o papel é o material que prefere para trabalhar. Depois, encostadas aos altares laterais ou em frente do altar-mor, há caixas de acrílico que recebem as colagens de Catarina Branco. Todas elas possuem a mesma forma de base, uma estilização da forma da ilha de São Miguel, feita sistematicamente a partir de mapas turísticos de papel. E todas elas recebem nomes alusivos à história da descoberta e povoação da ilha, que surge sempre aqui como pano de fundo e justificação da identidade pessoal. "A ilha desconhecida", por exemplo, ou "Densa vegetação", são alguns deles.

"Só na terceira viagem a São Miguel é que os navegantes desembarcaram. Por razões várias, não conseguiram fazê-lo antes. Entretanto, já tinham, como era costume, deixado casais de animais na ilha, a título de experiência, e só se estes sobreviviam até à viagem seguinte é que o povoamento humano se iniciava", conta a artista. Por isso, há uma peça ("Povoação") onde pequenos animais de plástico serpenteiam entre as formas recortadas à mão, havendo mesmo uma vaca toda coberta com lantejoulas e purpurina, a recordar o animal que marcaria, alguns séculos depois, a economia de toda a região.

E a religiosidade popular, que a artista convoca quase como uma certidão de nascimento da sua actividade artística, mantém-se na citação dos registos - pequenos quadros com uma litografia religiosa enquadrada por rendas e dourados - realizados por mãos anónimas que concentravam a piedade doméstica aqui como noutras regiões do país. Pontualmente, Catarina não desdenha a utilização da escama de peixe em vez do papel recortado, à imagem do artesanato da sua região. Outras, como em "Arcanjo", são as próprias características da dobragem do papel que aproximam a peça de uma imagem sagrada: penas, auréolas, coroas do Espírito Santo, mas também ouriços do mar e conchas convocam esse universo também sentimental que ainda hoje subsiste nos meios mais populares. Duas vitrines, uma em cada espaço de exposição mostram aliás objectos, fotografias e livros que pontuaram o processo criativo da artista.

As peças no núcleo de Santa Bárbara (antiga casa que albergava idosas de condição social elevada) são mais simples de aparência, mas mantêm a forma da ilha como suporte para a construção em volume. Catarina Branco percebe que há um caminho no seu trabalho na direcção da máscara, na medida em que o corpo tende a tomar o lugar dessa ilha que serve de suporte ao trabalho artístico. Como Ana Vieira, a grande referência da arte contemporânea nos Açores, sempre o fez, esta pesquisa identitária dobra-se numa reflexão sobre a condição insular e, no caso presente, mesmo micaelense. O director do Museu Carlos Machado não se enganou quando convidou a artista para integrar um projecto de inserção de peças de arte contemporânea numa igreja aberta ao culto, neste caso a de São José. Depois dos artistas Urbano e Maria José Cavaco, Catarina exporá durante o mês de Agosto, coincidindo com um festival de música de órgão que terá lugar nessa igreja. Segundo Duarte Melo, que escolheu os artistas com base na capacidade simbólica do respectivo trabalho, e lhes deixa inteira liberdade para realizarem o que quiserem, ‘é uma maneira de fazer memória.' E o trabalho de Catarina Branco, com efeito, faz memória, há muito tempo.

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