Neste país já não há montanhas sagradas

Foto

Duarte Belo fotografou o país de Orlando Ribeiro 30 anos depois de o geógrafo ter arrumado a câmara. Não há nostalgia, há vontade de ficar

Às vezes o sítio exacto é muito mais do que um lugar - é um exercício de memória que começa na cabeça de outra pessoa, passa por um mapa com dezenas de paragens obrigatórias e termina num livro de 300 páginas, retrato do território que vai além do jogo do "antes e agora". Duarte Belo, arquitecto e fotógrafo por convicção, percorreu o país que Orlando Ribeiro, geógrafo e fotógrafo por necessidade, registou durante 50 anos, como quem tira notas ou faz um desenho num caderno de campo. Entre os primeiros registos do geógrafo, em 1937, e os de Duarte Belo, feitos em Outubro de 2011 e agora publicados em Portugal Luz e Sombra: O País depois de Orlando Ribeiro (Temas e Debates/Círculo de Leitores), passaram quase 80 anos que modificaram profundamente o país e a sua paisagem. Os "dípticos" fotográficos de Ribeiro-Belo são reveladores - basta olhar para o centro do Porto e para as estradas que atravessam a Serra da Estrela.

O tempo longo em que Orlando Ribeiro percorria o país de 4L e a pé, revelando as primeiras imagens de aldeias remotas ou de vales escarpados - o tempo sem auto-estradas, aquele em que o cume das serras só se conquistava depois de horas de caminhada e em que os agricultores eram ainda jardineiros da paisagem -, já não existe. Para tirar as fotografias do novo livro, que cobre Portugal continental, Duarte Belo precisou apenas de duas semanas e não teve de meter a mochila às costas muitas vezes. Seis mil quilómetros, praticamente todos feitos de carro, quase sem tempo para parar e falar com as pessoas. "Teria montado tenda por muitos dias no planalto de Miranda", diz ao Ípsilon este arquitecto que a obra de Orlando Ribeiro (1911-1997) - a fotografia, mas sobretudo a escrita - arrastou para a geografia devagarinho (fez já dois livros por ele influenciado, Orlando Ribeiro - Seguido de uma Viagem Breve à Serra da Estrela e Portugal - O Sabor da Terra). "Muitas vezes são as pessoas que nos fazem querer ficar, outras é a atmosfera dos sítios."

Referência da geografia portuguesa, autor de livros tão importantes como Portugal, O Mediterrâneo e o Atlântico (1945) e Mediterrâneo. Ambiente e Tradição (1968), Orlando Ribeiro interessava-se sobretudo por Portugal, garante a sua mulher, Suzanne Daveau, que o acompanhou em muitas viagens. "Gostava de perceber como viviam as pessoas, como os traços das caras passavam de pais para filhos, como era a rotina daquele lugar. E isso às vezes demorava muito. Eu a querer continuar a andar e o Orlando, que era habitualmente muito impaciente com tudo, a querer ficar", recorda a geógrafa, que conheceu o professor em 1960 e tem sido a maior divulgadora da sua obra. Esse interesse pela vida, além da terra e das pedras, é o que confere à sua fotografia o lado antropológico e etnológico que a torna singular, explica Belo. "Há ainda um lado afectivo muito grande. E isto sem abdicar do rigor documental. Essa afectividade parte do facto de ele aliar a curiosidade do geógrafo a um sentimento muito grande de pertença aos lugares. Está ao mesmo tempo dentro e fora da paisagem: dentro porque participa no território, sente o que pisa, fala com as pessoas que fazem dele o que é; fora porque, ao mesmo tempo, tem o olhar distanciado do cientista, do que procura sempre explicar o que vê."

Sem nunca se envolver directamente na oposição ao regime, Orlando Ribeiro foi mostrando um país rural isolado, pobre, esquecido. Um país que Duarte Belo não encontrou. "Não queria fazer deste livro um exercício de nostalgia. Perdemos o Portugal do postal, com os campos arados e a arquitectura popular de qualidade; é verdade que o ordenamento do território, sobretudo o urbano, é na maioria das vezes um desastre; mas os habitantes de Marvão, da Praia de Mira ou de Trás-os-Montes vivem melhor - quem vem de fora para fotografar pode não gostar, mas os invernos ali já são diferentes."

Na apresentação de Portugal Luz e Sombra, dois geógrafos, Álvaro Domingues, da Universidade do Porto, e Jorge Gaspar, discípulo de Orlando Ribeiro, falaram da sua ligação ao mundo rural e de como o abandono da agricultura mudou o país. "Orlando Ribeiro gostava de regressar aos lugares para os ver transformarem-se", diz Gaspar, acrescentando que o livro de Duarte Belo mostra aos mais saudosistas que houve uma "evolução extraordinária na qualidade de vida das pessoas e que isso vale a pena", mesmo que a arquitectura seja às vezes "medonha" e que muitos não gostem de um país "mais garrido e mais gaiteiro": "A paisagem não é um quadro - a sua condição é a mudança." Quer resistamos ou não. "Temos de ultrapassar a ilusão da dicotomia cidade/campo. Também não estamos encurralados entre a cidade histórica e a aldeia típica - 99% do território é todo o resto e o livro do Duarte mostra isso", acrescentou Domingues.

Geografia comum

Duarte Belo quis apenas seguir os passos de Orlando Ribeiro e experimentar a sensação de pisar o lugar exacto que o geógrafo teria escolhido para fazer determinada imagem. "Espero ter acertado muitas vezes no sítio onde ele pôs os pés, com rigor", diz, explicando que deve ser alguns centímetros mais alto do que ele, já que cada vez que procurava copiar o enquadramento de Orlando Ribeiro era obrigado a baixar-se.

Seleccionar 250 fotografias das mais de 10 mil que estão arquivadas no Centro de Estudos Geográficos, feitas entre 1937, ano em que o geógrafo comprou a sua Leica com os primeiros salários de professor, e 1985, ano em que a arrumou, foi mais fácil do que Duarte Belo esperava. Muitas não têm legendas ou são demasiado genéricas e, estavam, à partida excluídas.

Duarte Belo garante que há uma geografia comum às pessoas que fotografam Portugal com o objectivo de conhecer o território. Trás-os-Montes e o seu planalto mirandês, o interior algarvio, a Serra da Estrela, laboratório a céu aberto que continua fascinar os geógrafos e os que a percorrem a pé, de uma nave a outra, entre um covão e um cântaro, Rua dos Mercadores acima. Daveau e Ribeiro fizeram muitas viagens à Estrela. "O Orlando adorava a serra, sair do carro e andar a pé, com a máquina ao pescoço, bloco no bolso", diz a geógrafa. Aquele é também o território ideal para pôr em prática um dos conselhos de Orlando Ribeiro, explicou Álvaro Domingues no lançamento: "Para ganhar a paisagem, dizia o professor, basta ganhar cota, subir a um ponto alto para olhar em volta." E, no caso dele, fotografar.

A construção das estradas que ligam a Covilhã a Seia e a Gouveia, atravessando a serra e dando acesso ao cume, foi para o geógrafo uma tristeza, garante Duarte Belo, referindo-se a uma das fotografias perto de Manteigas: "Ele teve um grande desgosto quando as estradas passaram a permitir que se entrasse na serra de carro. Aquela era a sua montanha sagrada, um território para conhecer a pé, mesmo com frio." O fotógrafo, que partilha com o geógrafo o gosto pelo documental e pela caminhada, reconhece que "há um chamamento da paisagem", um desejo de ver o que fica para lá da serra que está à nossa frente. "Nas fotografias de Orlando Ribeiro há um território que parece eterno. As que fiz para este livro mostram que a eternidade, às vezes, dura pouco."

Sugerir correcção
Comentar