Francesca Woodman, virgem suicida

Foto
CORTESIA DE GEORGE E BETTY WOODMAN

Começou a fotografar aos 13 anos, matou-se aos 22: as imagens que produziu nesse intervalo são agora alvo da sua maior retrospectiva americana de sempre. Tantos auto-retratos depois, continuamos a não saber quem é Francesca Woodman, mas uma coisa parece mais clara: este é o tempo dela

Francesca Woodman começou a fotografar aos 13 anos e suicidou-se aos 22. Nas centenas de imagens que produziu, o centro é quase sempre ela própria, quase sempre sozinha, frequentemente nua.

As suas fotografias são habitualmente descritas como auto-retratos. Mas, a sério, o que é que sabemos sobre Francesca Woodman?

A maior retrospectiva americana desde a sua morte, em 1981, está actualmente no Museu Guggenheim em Nova Iorque, onde pode ser vista até 13 de Junho. Corey Keller, curadora de fotografia do Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA), onde a exposição inaugurou em Novembro, antes de viajar para Nova Iorque, trabalhou durante quase cinco anos na preparação da retrospectiva. "Quando olhamos para um auto-retrato, esperamos aprender qualquer coisa sobre a pessoa representada", diz. "Mas depois de olhar para centenas de fotografias de Francesca Woodman, eu não sei quem ela é. Isso foi a parte mais frustrante para mim. Não se consegue perceber quem ela é. Ela não deixa. Ela aparece e desaparece e não há como fixá-la a nada."

O paradoxo das fotografias de Woodman é que elas são intensamente reveladoras - o corpo nu, frontal, impudico - mas simultaneamente opacas. Não são retratos no sentido autobiográfico. Ela própria terá relativizado a sua auto-representação, reduzindo-a a "uma questão de conveniência" (embora algumas fotografias, como uma em que três raparigas seguram uma reprodução do rosto de Francesca Woodman à frente da cara, sugiram que também tentou explorar questões de identidade).

Muitas vezes o que vemos é um corpo desintegrado: um par de pernas embutido num armário, braços envoltos numa casca de árvore, o torso nu coberto com papel de parede. Noutras imagens, o seu corpo dissipa-se num rasto de movimento. A sua aparência fantasmagórica evoca a fotografia espírita do século XIX, destinada a provar a existência de vida para além da morte. Muitas leituras críticas da sua obra concluíram que Francesca Woodman usou a fotografia como uma forma de desaparecimento - um prenúncio do seu suicídio. Mas, como escreveu recentemente a revista The Economist, isso é esquecer a energia e a fruição com que ela criava a sua arte.

Em todo o caso, a sua biografia é inescapável: 31 anos depois, o suicídio continua a assombrar a recepção da sua obra, para o bem e para o mal. "Raramente a produção juvenil de um artista é alvo de tanta atenção como aconteceu com Woodman", escreve Corey Keller no catálogo da exposição. Se ela não se tivesse suicidado aos 22 anos, estaríamos assim tão interessados nestas imagens? De certa forma, ela corresponde a um ideal romântico do artista: jovem, visceral, bonita e morta.

Mulher-prodígio

É por isso que a primeira grande retrospectiva de Woodman nos Estados Unidos pode ter levado tanto tempo. Mais tempo do que na Europa: o público português teve o raro privilégio de conhecer a obra desta artista americana em 1999, graças a uma exposição no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, co-produzida pela Fundação Cartier, que circulou por vários países europeus. Corey Keller nota que a recepção à obra de Woodman é diferente na Europa e nos Estados Unidos. "Ela é mais valorizada na Europa. Os europeus não têm o mesmo tipo de inibições que os americanos quando se trata de justificar o seu interesse na obra dela. Os museus americanos acham que, se vão investir recursos numa exposição, é melhor que seja num importante artista com A maiúsculo e não numa rapariga de 20 anos. Os europeus estão menos preocupados com esse tipo de canonização."

Não é que a descoberta de Woodman tenha sido tardia nos EUA. A sua obra, produzida sobretudo enquanto estudante de fotografia, era praticamente desconhecida à data da sua morte, para além do círculo de familiares, amigos, colegas de curso e professores. (Não por falta de ambição: Woodman costumava levar o seu portfolio a galerias e fazia telefonemas regularmente para tentar promover o seu trabalho.)

A primeira exposição dedicada à sua obra ocorreu apenas cinco anos depois, em 1986, no Wellesley College Museum, em Massachusetts, e foi acompanhada de um catálogo com textos de influentes críticas de arte, Abigail Solomon-Godeau e Rosalind Krauss, que ajudaram a estabelecer a reputação artística de Woodman. O culto gerou um cepticismo imediato. "Porquê Woodman? Porquê agora?", interrogou uma crítica.

Vinte e cinco anos depois, Francesca Woodman continua a gerar reacções diametralmente opostas: de um lado estão os que a vêem como um prodígio que desenvolveu um trabalho com poucas influências exteriores, do outro os que consideram que a sua fotografia não é propriamente original.

A defesa da sua obra tem por vezes servido outros propósitos para além da legitimação artística, como a noção de que Woodman era feminista. "Quando ela foi descoberta para primeira vez, em 1986, Abigail Solomon-Godeau descreve-a como um prodígio porque havia poucas mulheres-prodígio", diz Corey Keller. "Nesse momento, em que a história de arte está a ser reescrita para incluir mais mulheres, Woodman serviu uma necessidade real."

É duvidoso que a obra de Woodman seja intencionalmente feminista. A mutabilidade feminina representada nas suas fotografias parece resultar menos de uma qualquer reflexão sobre a condição feminina, como tantas leituras críticas actuais continuam a sugerir, do que de uma pulsão experimental. Os objectos ou acessórios nas suas fotografias - espelhos, lírios, uma cobra - têm um poder simbólico ou evocativo, mas isso não é muito diferente do que a fotografia de moda ou publicitária fazem. E se Woodman estivesse simplesmente a explorar diferentes efeitos estéticos? Uma das suas influências foi a fotógrafa de moda Deborah Tuberville. Woodman chegou a tentar uma carreira na fotografia de moda em Nova Iorque depois de terminar o curso de fotografia na Rhode Island School of Design, mas não conseguiu trabalho.

Uma cultura do auto-retrato

Francesca Woodman é certamente mais popular do que nunca. Um documentário sobre a sua família, The Woodmans, estreou-se no ano passado nos EUA. Nele, os pais de Woodman, ambos artistas, reflectem sobre a perda da filha, mas também sobre a questão delicada de serem a família de uma artista famosa. Após a morte de Francesca, o pai, George, começou a fazer fotografias com modelos femininos que evocam o trabalho da filha. Foi George quem ofereceu uma câmara fotográfica a Woodman quando ela tinha 13 anos. A exposição no Guggenheim inclui uma das suas fotografias iniciáticas, Auto-Retrato aos 13 anos.

Woodman é hoje reverenciada pelos jovens que entram nos cursos de fotografia como uma "estrela rock". De certa forma, o timing nunca foi tão propício à sua obra como agora. O anacronismo das suas fotografias a preto e branco parece feito à medida para uma era digital dominada pela nostalgia. O Instagram, uma das mais populares aplicações para smartphone, cria fotografias em formato quadrado (como as imagens de Woodman) e permite aplicar diferentes filtros que fazem as imagens parecerem vintage.

E depois, como nota Corey Keller, "a ideia de auto-representação faz parte da nossa cultura hoje, com o Facebook e a ausência de uma divisão entre o público e o privado". O auto-retrato é uma das imagens mais vulgares do nosso tempo.

O valor comercial da obra de Francesca Woodman também reflecte a sua popularidade. Uma prova original foi vendida num leilão em Nova Iorque no início deste mês por 170.500 dólares, mais de oito vezes o valor estimado.

"Porque é que as pessoas se interessam pelo seu trabalho?", perguntava Jennifer Blessing, curadora de fotografia do Guggenheim, na apresentação da retrospectiva à imprensa. "A resposta curta é que depois de vermos as fotografias elas são inesquecíveis."

Sugerir correcção
Comentar