Histórias de arte de um anjo imperfeito

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A exposição toma a arquitectura das salas e transforma-se numa narrativa no qual o espectador entra para tropeçar na vida e na arte do Nedko Solakov, com os seus acasos e absurdos JORGE MIGUEL GONÇALVES/NFACTOS

Humor, medo, coragem. Arte, vida, política. E histórias que se contam no espaço com desenho e textos, pintura e instalações. Bem-vindos a Tudo em ordem, com excepções, retrospectiva do búlgaro Nedko Solakov no Museu Serralves.

Para quem se equilibra sobre um corpo grande e pesado, Nedko Solakov (Bulgaria, 1957) tem um passo rápido. Não é fácil acompanhá-lo ao longo do Museu de Serralves. Assim que apresenta uma obra, avança para outra sala num ziguezague incontrolável e semelhante ao que caracteriza a sua produção. Desenhos virtuosos ou cartoonescos, instalações e filmes, livros e quadros, fotografias e pinturas. E histórias, muitas histórias desconcertantes, sobre si mesmo, o seu país ou o sistema da arte. Comecemos sobre o sistema da arte. Tudo em ordem, com excepções, a retrospectiva que depois de passar pela Ikon Gallery (de Birmingham, Reino Unido) e pelo S.M.A.K. (de Ghent, Bélgica) abre as portas este sábado no Porto (antes de seguir para a Galleria Trento, em Itália), tem uma particularidade. Ao contrário do que é habitual os directores dos museus e co-comissários tiveram que lidar com um conjunto de regras impostas pelo artista.

"Disponibilizei-lhes toda a informação que tinha disponível sobre os meus trabalhos desde que me formei em pintura em 1981. Depois selecionaram os melhores trabalhos de cada ano e desse conjunto escolheram apenas um por ano. Dos que foram ‘rejeitados', selecionei um conjunto que constitui a exposição da Galleria Trento. Acho que resultou bem e fiquei muito contente por terem aceitado jogar este jogo". Três trabalhos repetiram-se e um comissário ainda tentou escolher duas obras por ano. Mas nada feito: a soberania do artista estendeu-se à exposição, que organiza um percurso cronológico com alguns desvios pelo meio, o primeiro dos quais é a instalação This is me too..., feita para a primeira Manifesta, em Roterdão. Exposto no átrio do museu, é um trabalho excessivo - pela variedade de suportes que justapõe e pela introdução ao expectador das estratégias, preocupações e registos estílicos que caracterizam a obra em causa: o humor, a ironia, a presença de elementos autobiográficos, o uso da escrita e desenho manuais para criar situações ou narrativas insólitas. "Tive que a apertar um pouco, pois o espaço não era dos maiores, por isso vou acrescentar na parede umas aspas", diz. "As pessoas vão vê-la, obviamente, mas as aspas indicam que ela não está lá (risos)".

Humor e virtuosismo

A exposição toma a arquitectura das salas e transforma-se numa narrativa no qual o espectador entra para tropeçar na vida e na arte do Nedko Solakov, com os seus acasos e absurdos. Em The Yellow Blob (from the Absent-Minded Man), seguimos ao longo do corredor uma mancha amarela. Imaginamos o que significa ou para onde nos vai levar, antes de o artista confessar, numa simples frase escrita na parede, que se esqueceu do seu propósito. Outro trabalho que parece duvidar da possibilidade de clareza ou fim é A Life (Black & White). Na verdade trata-se de uma performance que se realizará ao longo de toda a exposição: um homem pinta a parede de branco que outro pintará em seguida de negro, e assim sucessivamente.

Outros trabalhos mostram um humor mais incisivo, com destinatários identificáveis. Datada de 1992, a instalação The Collector of Art (Somewhere in Africa is a great man collecting art from Europe and America, buying is Picasso for 23 coconuts...) sugere logo pelo título pistas. "O colecionador é uma personagem ficcional", esclarece, "mas as peças são originais de Serralves e do Museu dos Soares dos Reis que o suposto coleccionador terá comprado em troca de cocos". A obra descreve-se sumariamente: uma cabana de praia rodeada de areia e cujo interior guarda obras de Paulo Rego, Cildo Meireles ou Juan Muñoz, entre outros nomes das colecções.

Os interesses de Solakov não têm fronteiras. Do sistema da arte pode passar com facilidade e elegância para o Antigo e o Novo Testamento. Escrevemos "elegância", porque desenha bem, com graça e virtuosismo, como se pode constatar na série Well-Know Stories (1992-95), interpretação profana e cáustica de vários episódios bíblicos. Com traços suaves a tinta-da-china, e legendas que identificam as personagens e o que elas estão a fazer (Abraão, por exemplo, prepara-se para degolar um anjo e não revelamos mais nada).

Esta é uma arte cheia de histórias. Histórias do artista, do folclore eslavo (veja-se A Very Sad Self-Portrait, de 1984), do cristianismo, das ruínas do comunismo no Leste europeu: "Quando comecei a fazer pintura, todos os meus trabalhos tinham histórias. Mais tarde quando comecei a fazer instalações, continuaram a ter pois acrescentava-lhes textos. As minhas histórias, isso é algo que reivindico, acontecem no espaço. Sei que parece antiquado, mas o meu trabalho é assim. Isso não significa que escreva livros". A edição de 99 Fears, que estará exposta em diferentes lugares da exposição, parece insinuar o contrário, porque é um livro, com desenhos e legendas que compõem situações com a síntese dos melhores cartoons. "Mas é neste espaço, sob esta luz que ele será aberto e folheado, não numa livraria", contrapõe.

Ironia e medo

Top Secret é uma das peças mais emblemáticas de Tudo em ordem, com excepções. Criada entre 1989 e 1990 consiste num pequeno armário do qual saem duas gavetas. Até aqui nada de especial, até que percebemos que os elas mostram. Documentos que atestam a colaboração de Solakov com a política secreta búlgara até 1993. É uma peça corajosa, que pese embora a polémica que provocou aquando da primeira apresentação, distancia-se de qualquer exibicionismo ou ficção (nesse sentido, enquanto gesto, não é comparável às aventuradas de Joseph Beuys na Crimeia). Já Discussion (Property), conta uma história diferente. Feita de texto, desenhos e caracteres cirílicos, resgata a polémica sobre a propriedade da metralhadora AK-47. Russos ou Búlgaros? O artista revela que as duas partes chegaram finalmente a acordo em 2006: "Depois de todos estes anos de discussão sobre direitos de propriedade, sinto-me pessoalmente satisfeito porque, pelo menos no sector das armas de assalto do comércio internacional de armamento, haverá finalmente alguma paz".

A ironia de Nedko Solakov não se fica pelas histórias da vida pública (da arte ou da política). Estende-se à sua privada e mundana. O medo de voar, como um catalisador da produção artística, é o assunto de duas obras: Fear (1987), pintura de um passageiro isolado num avião, e a obra homónima de 2003: dez esculturas em terracota que o artista moldou com as mãos em viagens entre Sofia, Munique, Milão, Viena, Frankfurt e Amesterdão. O resultado expõe-se ao lado dos respectivos bilhetes: esculturas formadas pelo medo em contraste com Top Secret. E não são apenas os medos que são revelados. Em Some Personal Taboos (2005), vídeo que documenta a criação de um trabalho, ficamos a saber que deixou de fumar, beber e foder outras mulheres. Ou talvez não. Vejam no que consiste o trabalho e atentem na frase final. "Ainda não me sinto um anjo de meia-idade sem vícios".

A família também faz uma aparição na série de pequenos livros que o artista fez com os filhos Vessi e Dimmi em 1991. Numa página, estão desenhos infantis, noutra, desenhos do próprio Solakov. Por vezes há sobreposições, desenhos que parecem nascer de outros desenhos. Num num primeiro olhar, a autoria parece ser só uma, mas rapidamente distinguimos os traços e os detalhes. E numa parede, junto aos livros, vários ecrãs permitem-nos assistir ao reencontro de todos os autores, vinte anos depois, com os desenhos. Uma releitura.

Tudo em ordem, com excepções é também uma releitura, pensada e concretizada entre artista e João Fernandes, director e comissário do Museu de Serralves. E um portal para entrarmos numa obra onde tão excessiva quanto discreta, tão corrosiva quanto tocante. Uma das pinturas que abre a exposição deixa o convite: representa uma estrada que entra, sem fim, na escuridão, com o título: On the Way.

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