No rasto de António da Loja

Foto

Tarefa hercúlea, a de tentar fintar o tempo para descobrir os rostos que ele não apagou. É o que andou a fazer Nelson d’Aires, fotojornalista, atrás de gente que há décadas foi espantosamente retratada por um fotógrafo de província, António da Loja.

Será Custódia Aniceto mesmo Custódia Aniceto? E onde vive? A dúvida foi-se impondo ao fotojornalista que a viu, retratada por outro fotógrafo: 16, 18 anos talvez, cabelo negro, blusa branca, saia até aos joelhos levemente inclinados, numa pose serena, da qual nos distraem a tela branca, que lhe enquadra meio corpo, e o chão, a fazer lembrar um estábulo. Um estábulo?

A imagem, como a pergunta, não sai da cabeça de Nelson d’Aires desde que a descobriu no álbum que em 2003 deu a descobrir (mal ainda) ao país a fotografia de António Gomes Pedro (AGP), conhecido em Mora por António da Loja. Dez anos depois, este livro inspirou d’Aires (Vila do Conde, n.1974) a ir atrás das suas personagens, morenses comuns. E a Estação Imagem Mora concedeu-lhe uma bolsa para essa tarefa hercúlea de tentar fintar o tempo, para descobrir os rostos que ele não apagou.

O tempo urge. A exposição e o livro têm de estar prontos em Abril e ainda há gente que Nelson D’Aires gostaria de encontrar, e fotografar. Ainda não descobriu se Custódia Aniceto é agora, como lhe dizem, uma sexagenária emigrante na África do Sul. Mas já descobriu, boa parte do trabalho de campo feito, que o tempo lhe pregou várias partidas, apagando dos habitantes de Mora a memória de muitas das imagens que ele leva debaixo do braço para as conversas exploratórias.

Este desmemoriar complica a tarefa deste precário da fotografia, um estranho em solo alentejano, a perseguir os passos do “António da Loja”, durante décadas o fotógrafo “oficial” deste concelho e dado a conhecer há uma década, precisamente, por outro fotojornalista, Luís Vasconcelos, que seleccionou duas centenas de imagens entre os 150 mil negativos que AGP deixou aos filhos, Fernando e António, que mantém aberta a porta da loja de ferragens do pai.

Entre o livro que nos revela a surpreendente qualidade da fotografia de AGP e este mergulho de Nelson d’Aires no seu universo, Luís Vasconcelos fundou, com mais 14 pessoas, a Estação Imagem Mora. Que instituiu os homónimos prémio de fotojornalismo. A estação onde foram buscar o nome é um lugar já sem trilhos e sem comboios, para onde o d’Aires se habituou a viajar por estes dias de Abril, nos últimos anos, por força de várias distinções – uma delas o Grande Prémio, em 2011, com uma reportagem em torno da história de Leandro Pires, menino que um ano antes se afogara no Tua, em Mirandela, para fugir a um quotidiano de bullying.

No ano passado, para além de um outro prémio na categoria Notícias, com uma reportagem sobre os sobreviventes do naufrágio do Virgem do Sameiro, Nelson viu o júri escolher o seu projecto para a bolsa, criada para financiar trabalhos sobre o Alentejo. Ele nem quis sair de Mora. Livro na mão, decidiu, na véspera da entrega das candidaturas à bolsa, que gostaria de ir atrás das pessoas que AGP fotografara ao longo de décadas. Gente espantosamente retratada, em poses por vezes desconcertantes para o que esperamos ver num fotógrafo de província que, para além de um irmão que foi fotógrafo oficial da CP não teve, que se conheça, qualquer formação na profissão que escolheu, suportando-se em conselhos de um amigo e nalgumas leituras.

Um e outro

E se um era marçano, que com cinco contos ganhos na lotaria abriu o seu estúdio nas traseiras da loja de ferragens de um parente onde cedo começou a trabalhar, o outro, Nelson d’Aires, foi resgatado pela fotografia a uma carreira de orçamentista na construção civil. Também sem passar pelos processos formais de formação da sua actual profissão. O que não o impediu, já se vê, de aos 38 anos ter conseguido dos seu pares um reconhecimento maior que o que AGP (1927–1999) alcançou em toda a sua vida. E que ainda nem se compara, apesar dos esforços de Luís Vasconcelos, à estratosfera para onde foi lançado em Espanha um também desconhecido galego, de seu nome Virxilio Vieiteiz, de óbvias afinidades estéticas.

Em AGP, o tempo, que transformou o seu legado numa viagem a um Portugal que nos ensinaram a esquecer, e o olhar da crítica trataram de elevar aos píncaros um trabalho cuja qualidade estava lá desde a primeira hora, atirando-nos, nalgumas imagens, para referências como o alemão August Sanders ou o norte-americano Walker Evans. Simplesmente, no caso do português, as necessidades comerciais escondiam, até à descoberta dos negativos por Luís Vasconcelos, boa parte desse talento.

AGP fotografou sempre em médio formato, com negativos quadrados, fosse em estúdio ou no campo. Mas o que os seus clientes viram foram sempre impressões num papel normal, com a qualidade de impressão possível, num enquadramento dois por três, rectangular. Que escondia uma parte, portanto, de um olhar perfeccionista, que se revelou apenas em livro, há dez anos.

Nelson d’Aires teve a sorte de o folhear, de se espantar também, a tempo de gizar o projecto para a bolsa. A que o põe, por estes dias de Março em que o Ípsilon o acompanha, em Mora, a correr atrás dos dias que lhe restam para, à quinta passagem pelo concelho, conseguir fotografar algumas das pessoas de quem foi conseguindo referências: para as incluir na exposição que abriu na semana passada no dia de entrega de prémios da edição de 2013 do Estação Imagem Mora.

É uma corrida contra o tempo que se esgota, rápido, e o tempo que passou lentamente, antes sequer de ele ter aqui chegado. O tempo que parece não ter passado pela Casa Progresso, a loja agora gerida pelos filhos de AGP, que lhe mostram o stúdio e ali se deixam fotografar; mas que deixou Mora sem o “seu” fotógrafo e sem algumas das suas personagens; que forçou outras a migrar ou a emigrar; que tornou alguns rostos, os das crianças, principalmente, de identificação difícil, passadas décadas.

Na colecção de AGP há casamentos, baptizados e comunhões, mas também muitos velhos, que foram, numa certa fase, uma obsessão documental do “retratista” – era assim que se identificava. “Já morreu tudo. Falta só a gente”, sentencia Maria Manuel Boto, que ele ainda não conseguiu fotografar, mais a irmã, Elisa, protagonistas, com um irmão que não vive em Mora, de um retrato enquanto jovens sob o arco de uma casa no bairro da Misericórdia.

Iam para o casamento de uma prima, quando António da Loja assim as fixou. Agora, ambas frequentam um centro de actividades artísticas da câmara municipal, bom sítio, de tantas mulheres para lá dos 50 anos vividos, para conseguir identificar, e perceber por onde andarão, mais algumas pessoas. Mas Nelson d’Aires nem consegue sequer convencer Elisa a participar no projecto, apesar do à vontade que conseguiu estabelecer com aquele grupo que o rodeia.

Se a estrada de Lisboa para Mora está cheia de rectas, não faltam curvas no caminho até ao coração dos seus habitantes. Basta ouvir agora, conversa de amiga, Elisa: “Nunca imaginei que conseguisses chegar a tanta gente. As pessoas são desconfiadas. Ainda por cima, com essa barba e cabelo comprido. Agora até podias ir de Jesus, na procissão do Senhor dos Passos”.

Aproveitando a bíblica imagem, pode dizer-se que o seu percurso inicial teve algo de calvário. Ainda antes de ter podido dizer ao que ia, de mostrar a sua máquina sequer, Nelson D’Aires percebeu a diferença entre ser-se o António da Loja, conhecido por todo o concelho de Mora e arredores, procurado em dias de feira por clientes ansiosos por um retrato, e ser-se um forasteiro em terra de gente avisada. Que viu esse traço de personalidade colectiva ser carregado, nos últimos anos, pelo receio de burlões, que percorrem os montes à procura de um assomo de ingenuidade.

- “Bom dia. Estou a fazer um trabalho com a Estação Imagem e a Câmara de Mora....

- “Não sei se está!!”, respondeu-lhe, seco, curto, a mulher, antes que ele avançasse mais.

E esta nem teria, acredita, um pau de marmeleira, como outra, dona Pomba, idosa, que ele arriscou a tentar interpelar, sozinho, num bairro solarengo da freguesia de Cabeção. A simpatia não chegava. Teve de se munir de amigos. António Carlos, da divisão de Cultura da autarquia. Manuel Canelas, boa ponte em Cabeção. Depois, entre os que foi conhecendo, batia a uma porta, pedindo ajuda para conseguir, com sucesso, interpelar o morador da porta ao lado.

E assim foi enchendo um exemplar do álbum sobre AGP com post-it coloridos, cheios de nomes e relações de parentesco; e possíveis moradas. Algumas certeiras, outras meros tiros ao lado de olhos cheios de boa vontade de o ajudar mas enganados pelo passar dos anos. Foi o caso de Custódia Aniceto, a jovem de blusa branca, saia justa, retratada em chão de palha ocultado pelo crop para a impressão em formato tipo passe, que quilómetros e muitas conversas depois, ainda desconhece quem era.

Com tudo isto, a tarde ainda curta, de Março, vai-se acabando, e o fotógrafo nada de fotografar. Nada que não lhe tenha acontecido, várias vezes, vários dias. Mas a verdade é que, naquelas horas, como em dezenas de outras assim parecidas, ele aprendeu mais sobre Mora, e vai abrindo uma porta aqui, outra acolá. E confiança, que não se compra, é, neste trabalho, tão essencial como o domínio da luz.

Poderia dizê-lo AGP, se fosse vivo, para nos explicar o à vontade com que levou algumas pessoas a posar das mais estranhas maneiras – há um ferroviário, ensaiador de marchas populares, retratado de boneca de porcelana na mão; há uma família que levou o mobiliário de um bebé para a rua, para que este assim fosse retratado; e há gerações de morenses que se entregaram, sem receio, ao prazer que o António da Loja tinha em preparar, adereço a adereço, cuidadosamente, os seus retratos.

Que só se chega lá com confiança, pode dizê-lo ainda Nelson D’Aires, que, nestes tempos em que o fotojornalismo se tem de fazer em horas, ganhou o Grande Prémio da Estação Imagem Mora, com Leandro, por ter tido o tempo necessário, dias, para quase se tornar invisível perante uma família angustiada, à procura de um corpo.

Em Mora, caiu no goto de muita gente. “Ele é um charmoso. Conseguiu chegar às pessoas, o não era nada fácil. É uma qualidade que ele tem”, apontava, na semana passada, Luís Vasconcelos, já depois de ter observado as 50 fotografias, de outros tantos morenses, que Nelson D’Aires acabou por conseguir fazer, num trabalho “muito bom, muito consistente do ponto de vista estético”, avaliava.

É imagem digital; a cores, por contraponto ao preto e branco de António Gomes Pedro; formato rectangular, em vez do quadrado da Hasselblad de António da Loja; partilhando com AGP as suas personagens e o gozo pela cenarização dos enquadramentos, sempre que tal lhe foi possível. Houve quem se quisesse fotografada num telhado. Outros houve que, mesmo sorrindo, quase o fizeram desistir, tal a tristeza que o seu olhar revelava. Algumas destas fotografias estão expostas em Mora. Outras aparecem apenas no livro que, anualmente é publicado, com o resultado da bolsa. Outras não estão em nenhum dos suportes, porque Nelson as não conseguiu fazer, situação por vezes angustiante para um profissional que leva a sério o lema de Andre Kertesz, “olhar não é suficiente; tens de sentir o que estás a pensar”, que encima o sítio da internet da Estação Imagem. De alguns morenses, esteve a metros de os fixar, com outros, viu fecharem-se as portas, mesmo depois de, aparentemente, aberta a vontade. E Custódia, aquele rosto enigmático das primeiras páginas do livro que andou sempre consigo, nunca chegou a saber, sequer, quem era.

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