Luz e sombra para a arquitectura portuguesa

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O projecto dos Aires Mateus para a sede da EDP na frente ribeirinha de Lisboa, que deve ficar pronta este ano

A crise está na agenda dos arquitectos para 2014: há pouca encomenda, poucos concursos, pouca actividade. A nova sede da EDP, em Lisboa, é um dos poucos grandes projectos em curso — e a China aparece como ponto de fuga

Os efeitos dilacerantes da crise na profissão de arquitecto são transversais a alguns dos mais importantes ateliers portugueses: pouca encomenda, poucos concursos, pouca actividade, sobretudo casas unifamiliares, bastante restauro ou requalificação. Ainda assim, abre-se espaço em várias cidades do país (e não só, mas lá iremos) para novos projectos que deverão marcar 2014 — o mais visível será a nova sede da EDP, que mudará a frente ribeirinha de Lisboa.

Só a movimentada Av. 24 de Julho, uma linha de comboio e um punhado de armazéns baixos separam a nova sede da EDP do Tejo. Todos os dias, a obra cresce mais um pouco, erguendo-se já o que Manuel Aires Mateus descreve como um “quarteirão invertido” — o gigantesco buraco de 90 metros de comprimento por 60 de largura e 30 de profundidade onde vão estacionar os carros (quatro pisos) e onde vão concentrar-se algumas áreas sociais (dois pisos). Já se ergue acima do solo um edifício de oito andares organizado em duas torres ligadas, rumo ao céu e frente à luz que o rio reflecte, inclemente. No meio delas, haverá lojas, restaurantes e “uma praça pública atravessável”.

O novo equipamento marca um outro patamar no trabalho de um dos mais prestigiados ateliers de arquitectura nacionais da sua geração, que agora implanta numa das avenidas mais importantes da capital um edifício monumental. “É um projecto muito invulgar”, diz Manuel Aires, reconhecendo que, em 2008, quando o atelier que mantém com o seu irmão, Francisco, venceu o concurso para projectar a nova sede da companhia eléctrica portuguesa (orçada em mais de 56 milhões de euros), os dois se viram confrontados com novos desafios — a escala, o rio, as funções de representação que tem a sede de uma empresa e o carácter parcialmente público do espaço. Em causa está um programa flexível que precisa de gerir escritórios, salas de reuniões, auditórios e espaços para exposições, mas que também desenha um sistema. “E é muito interessante pensar que se vai desenhar um sistema de luz — que em Portugal quer dizer um sistema de sombra, porque o sol em Portugal é um problema e não só um benefício.” Tratando-se de uma área tão ampla numa localização privilegiada, os arquitectos quiseram que o edifício oferecesse “uma ideia de espaço público à cidade” — “uma praça sombreada, no centro entre as duas torres”.

A propósito do edifício que deverá ficar concluído no final deste Verão, Manuel Aires fala de uma dança entre a transparência e a opacidade: Será “um edifício transparente, mas desenhado através da sombra”.



Um sector morto

No calendário de 2014 do atelier Aires Mateus, há ainda a intervenção no Mercado da Ribeira, em Lisboa, para a concessão comissariada pela revista Time Out e obras a começar: um edifício residencial no centro de Paris e o Centro de Criação Contemporânea Olivier Debré, em Tours (França).

Já Ricardo Bak Gordon, parceiro do arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha no novo Museu dos Coches, é frontal sobre os seus projectos para obras a terminar este ano: “Rigorosamente nenhum, e estamos muito preocupados.” Suspenso pela “expectativa natural” quanto à inauguração do muito debatido museu, Bak Gordon diz que se trata de “uma obra extraordinária, com prazos e preços controladíssimos ao milímetro”. Que, segundo o secretário de Estado da Cultura, só abrirá em 2015, o que “é a mesma coisa que dizer que não contem com este Governo para abrir o museu”, lamenta o arquitecto.

Falamos de crise. “O sector está morto. Toda uma economia foi interrompida e posta de lado”, atesta Bak Gordon. Eduardo Souto de Moura confirma o diagnóstico quando fala dos projectos que tem em agenda para concluir e/ou inaugurar em 2014. Numa singela folha A4 manuscrita, o arquitecto do Estádio de Braga enumera apenas dois projectos, e a participação numa exposição colectiva em Londres (com Álvaro Siza e arquitectos de outros países). “É o que há”, escreve, esperando que se concretizem a inauguração da Casa do Conhecimento, em Vila Verde, projecto de perto de três milhões de euros associado ao Centro de Computação Gráfica da Universidade do Minho, e a conclusão da Pousada da Enatur na Covilhã, resultante da reconversão do antigo Sanatório dos Ferroviários na Serra da Estrela, originalmente projectado pelo arquitecto-cineasta Cottinelli Telmo.

Lacónica foi também a resposta de Álvaro Siza: “Há coisas que imagino que possam ser inauguradas este ano, mas o que vai mesmo acontecer não sei dizer.” Em Portugal, Siza deverá ver finalmente abertas as portas de duas fundações que projectou para Nadir Afonso, em Chaves, e Manuel Cargaleiro, no Seixal. As duas autarquias confirmaram ao Ípsilon que ambas as inaugurações ocorrerão em 2014, e a Fundação Nadir Afonso, cuja conclusão chegou a estar prevista para 2011, anunciou mesmo a data de abertura (8 de Junho), com uma exposição de homenagem ao arquitecto-pintor desaparecido em Dezembro. Lá fora, Siza diz ter apenas prevista a conclusão do edifício de escritórios da fábrica Shihlien Chemical, em Huaian, na província chinesa de Jiangsu — projecto em parceria com o arquitecto Carlos Castanheira.

Os dois Pritzker portugueses estão entretanto, desde 25 de Janeiro e até 6 de Abril, representados na instalação Sensing Spaces: Architecture Reimagined, com que a Royal Academy of Arts, em Londres, reúne trabalhos de sete arquitectos/ateliers de todo o mundo.

Do atelier de João Carrilho da Graça chegam também notícias de obras em curso ou para começar — as mais sonantes são as do Terminal de Cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia, que devem arrancar este ano, e a passagem à prática dos trabalhos de protecção e musealização do pólo arqueológico da Villa Galo-Romana de Séviac (França). A excepção é a intervenção nas alas do Convento de Jesus, em Setúbal, parte do demorado projecto de recuperação e reconversão do espaço que foi aprovado no final da década de 1990 e que será para terminar este ano.

No Grande Porto, um projecto de grande impacto público (e visual) é o Terminal de Passageiros do Porto de Leixões, do arquitecto Luís Pedro Silva, cuja silhueta marca já aquele sítio entre as praias de Matosinhos e de Leça da Palmeira. Vai completar o novo cais para cruzeiros turísticos, pensado para acolher até 2500 passageiros — a que está também associado um porto de recreio —, e cujo programa contempla também o futuro Parque de Ciência e Tecnologias do Mar.

O custo está avaliado em perto de 50 milhões de euros e a Administração do Porto do Douro e Leixões diz que a obra “está a decorrer como previsto”, confirmando a sua conclusão durante o corrente ano.

Na ronda feita junto de alguns ateliers no Norte do país, confirmámos também que grande parte dos seus titulares está ou parada (caso do Atelier 15, de Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez), a trabalhar em moradias (Graça Correia/Roberto Ragazzi, ou Nuno Brandão Costa, esperando este concluir tambémum hotel rural em Montesinho), ou então na reabilitação de habitações e no turismo (José Manuel Gigante e João Paulo Loureiro).

Das obras com relevo arquitectónico e público, uma das mais esperadas é a que o atelier portuense –é+ (Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos) está a fazer, em colaboração com João Mendes Ribeiro, na Ribeira Grande, nos Açores: o ACAC — Arquipélago, Centro de Artes Contemporâneas. O projecto venceu o concurso aberto pela Direcção Regional de Cultura dos Açores em 2007, e visa dotar a região de um equipamento aberto à criação artística contemporânea.



Na China

A crise “foi e está a ser duríssima para os arquitectos”, diz Manuel Aires Mateus, mas está também a manifestar-se como “um momento muito importante de reflexão para a arquitectura portuguesa, que sempre foi uma cultura de dificuldade, de usos mínimos”, nota o co-autor da nova sede da EDP.

Um dos pontos de fuga é a internacionalização, e além da obra de Siza na China, o grupo Proap de João Nunes, dedicado à arquitectura paisagista — e que em 2013 viu abrir ao público a sua requalificação do miradouro de Santa Catarina/Adamastor, em Lisboa —, vai desenhar o verde de uma nova cidade naquele país. Um concurso ganho no final de 2013 vai pôr o Proap, em parceria com uma empresa chinesa de construção, a projectar o masterplan de espaços verdes de Kekedala, a nova cidade da província de Xinjiang, junto à fronteira com o Cazaquistão. Tem também em mãos, entre outros, o projecto de espaço público do Quartier Kiem Plateau Kirchberg, no Luxemburgo. Em Portugal, o Proap vai concentrar-se na segunda fase do projecto de qualificação do espaço público da Ribeira das Naus, explica o arquitecto Iñaki Zoilo: “Abrirá à cidade amplas zonas verdes em complemento à primeira fase, mais dura, mais mineral, o que permitirá uma consciência diferente do rio.”

E depois há as exposições: a arquitectura portuguesa vai estar representada na 14.ª Bienal de Veneza. Homeland: less housing more home — ou seja, o problema da habitação — é o tema com que o curador Pedro Campos Costa irá responder ao desafio do comissário geral da bienal, o mediático arquitecto holandês Rem Koolhaas, que propôs como tema-título para este ano Fundamentals. Já se sabe que o projecto que Portugal vai levar a Veneza contará com a colaboração da Trienal de Arquitectura de Lisboa, cujos comissários para 2016 (André Tavares e Diogo Seixas Lopes) foram já anunciados com avisada antecedência. 

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