O mestre Goldblatt e a seca fotográfica pós-apartheid

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O trabalho exaustivo que Golblatt foi fazendo ao longo de muitas décadas secou muitos assuntos que podiam ter sido explorados por outros fotógrafos pós-apartheid

Os fotógrafos sul-africanos começaram a olhar para os países vizinhos. A “culpa” é de David Goldblatt, que “não deixou quase nada para os outros fotografarem!”

As “profundas dúvidas” de Pieter Hugo em relação à fotografia vão-se tornando famosas. Já usou a metáfora do filósofo que um dia chega à conclusão de que Deus morreu para explicar como se sente em relação ao retrato fotográfico, género através do qual é “impossível transmitir o que quer que se aproxime de verdade”. O desafio, diz, passa por investigar, durante a vida inteira se for preciso, as razões desse “falhanço”. O que quer dizer que, apesar de tudo, até nem se sente “um fotógrafo que desconsidera completamente a fotografia”. Mas “tem dias”. E o desafio maior surge quando a este cepticismo tem de acrescentar outro “problema”: David Goldblatt (Randfontein, 1930), mestre da fotografia sul-africana. A conversa entre Wim van Sinderen, curador do Museu de Fotografia de Haia, Holanda, e Pieter Hugo rolava acerca do interesse pela fotografia por parte de museus, instituições e coleccionadores na África do Sul nos anos de apartheid: havia pouco interesse, nenhum ou um interesse enviesado pela lei do mais forte. Para o exterior, à época, as imagens que vendiam eram as que continham manifestações e cenas de violência, com petardos a rebentar por todo lado. Ninguém estava interessado nas fotografias documentais, de pose e inquisitivas, de Goldblatt. Mas ele continuava a fotografar. Um “problema”, portanto.

Num debate organizado pela Fotografen Federatie e pela PhotoQ, em Amesterdão, no arranque da tournée desta retrospectiva, Hugo assinalou o momento em que a descoberta da obra de Goldblatt se tornou decisiva na maneira como viria a fotografar. Mas também foi dizendo que o trabalho exaustivo que o mestre foi fazendo (e ainda faz) ao longo de muitas décadas secou muitos assuntos que podiam ter sido explorados por outros fotógrafos pós-apartheid.

“O primeiro livro de David Golblatt que vi foi decisivo, caiu-me a ficha. E disse: ‘é isto que quero fazer. Quero usar a fotografia para contar histórias sem que cada imagem tenha um ponto de exclamação’.” A admiração foi grande, só que veio acompanhada pela descoberta de que Golgblatt fotografava todos os dias há pelo menos 60 anos. “As fotografias dele são todas boas. Ele não deixou quase nada para os outros fotografarem! Fodeu-nos isto tudo!”, disse Pieter Hugo entre risos da plateia e de Wim van Sinderen, também curador da retrospectiva que agora se apresenta no edifício-sede da Gulbenkian.

Não se sabe se foram também motivados a fazer as malas por causa do génio de Goldblatt, mas perante esta aparente “seca de assuntos”, muitos fotógrafos sul-africanos pós-apartheid rumaram aos países vizinhos e começaram a surgir com frequência na cena internacional com trabalhos fora do seu habitat. Para Hugo, que já mostrou séries realizadas no Gana, na Nigéria, no Botswana, no Ruanda e em Moçambique, um dos “culpados” desta emigração é Goldblatt, cuja obra explora as noções de território, identidade, migração, alienação e luta contra o apagamento da memória.

Um exemplo da deslocação do olhar de fotógrafos sul-africanos para paragens cercanas pode ser dado pelo trabalho de Guy Tillim (Joanesburgo, 1962), que depois de anos de experiência como fotojornalista nos anos quentes do apartheid deambulou pelas “avenidas de sonho” da arquitectura modernista pós-colonial na África subsaariana idealizadas por líderes anti-colonialistas como o congolês Patrice Lumumba (a série Avenue Patrice Lumumba, passou pela Fundação Serralves, em 2009). Outro exemplo é o de Jo Ractliffe (Joanesburgo, 1961). Depois de anos a ouvir ressonâncias de um país para onde eram enviados para cumprir serviço militar amigos, irmãos e namorados, quis fotografar em Angola, um território que adquiriu para si uma aura “mitológica”. Em Luanda, com a série Terreno Ocupado, procurou sinais do legado colonialista português e as cicatrizes da guerra civil entre a UNITA e o MPLA, que deixaram profundas marcas. E depois, em As Terras do Fim do Mundo, percorreu as linhas onde, nos anos 70 e 80, se travou a guerra (e o jogo de influências internacionais) entre Angola e a África do Sul, para um exercício que tenta captar a força histórica de violência impregnada nos lugares. Ou ainda Mikhael Subotzky, fotógrafo da cooperativa Magnum, que tem dedicado parte do seu trabalho a prisões emblemáticas um pouco por todo mundo e que em, em 2011, integrou o projecto Postcards From America, longa viagem de costa a costa dos EUA, ao lado de mais quatro fotógrafos da agência.

Mas este olhar também se pode fazer ao contrário. E da mesma forma que muitos artistas e fotógrafos sul-africanos procuraram outros lugares, de fora também cresceu o interesse em problematizar a África do Sul como lugar. Transition, social landscape, projecto comissariado por François Hébel e John Fleetwood para os Encontros de Arles do ano passado, desafiou seis fotógr afos sul-africanos (Santu Mofokeng, Pieter Hugo, Zanele Muholi, Cedric Nunn, Jo Ractliffe, Thabiso Sekgala) e seis franceses (Patrick Tourneboeuf, Alain Willaume, Raphaël Dallaporta, Harry Gruyaert [um belga a viver em França], Philippe Chancel, Thibaut Cuisset) a apresentarem projectos que interpretassem as ideias de território nacional e a sua relação com a demografia. O centenário da imposição do Land Act, a primeira lei do regime de apartheid que reservava a terra em exclusivo para os brancos, foi o ponto de partida. Espalhados por todo país, estes doze fotógrafos trouxeram trabalhos que se situam entre a realidade e a ficção, entre a banalidade e a estranheza, a carência e a abundância. O mapa que se desenhou nas paredes falsas do Parc des Ateliers, em Arles, era a única bússola para se percorrer um universo visual estilhaçado, onde ficaram bem patentes os pontos de vista em extremos opostos, as divergências e as perguntas sem resposta. Tudo derivas que se colam bem à prática fotográfica de Pieter Hugo, que se deve ter sentido como peixe na água neste contexto. 

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