Orimoto gosta de avós e quer almoçar com elas

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A mãe de Tatsumi Orimoto, uma doente de Alzheimer com 95 anos tornou-se o tema primordial do artista japonês, que a ela se dedicou em obras como a série Art-Mama: In The Big Box e Big Shoes

Tatsumi Orimoto já organizou outros Almoços com Avós, mas nunca antes conseguiu juntar tantas — serão 500 — como na performance da próxima terça-feira em Évora. A convite da Trienal do Alentejo, o artista vem finalmente a Portugal mostrar um trabalho que reflecte sobre o envelhecimento

Não é fácil imaginar o que passará pela cabeça de cada uma das mais de 500 avós alentejanas que na próxima terça-feira, 1 de Abril, vão entrar no convento São Bento de Cástris, em Évora, para um almoço concebido pelo artista japonês Tatsumi Orimoto. É um almoço, mas é também uma performance, na qual Orimoto actua como mestre-de-cerimónias. “Gostaria de estabelecer comunicação com muitas avós em Portugal”, diz-nos, numa breve entrevista por e-mail a partir do Japão a pretexto da sua participação na Trienal no Alentejo, festival que cruza arte e gastronomia e que decorre desde Fevereiro e até Outubro.

Orimoto, de 68 anos, transformou a sua vida — e em particular a sua vida com a mãe, que tem 95 anos e sofre de Alzheimer — numa performance. “Fiz da comunicação com pessoas comuns o meu trabalho artístico”, explica. “A partir de 1996, depois de ter ficado sozinho com a minha mãe, centrei a minha arte na vida com ela, fazendo da minha vida real a minha performance artística.” E foi assim que a mãe de Tatsumi Orimoto se tornou Art Mama.

Parte desse trabalho passa pelas fotos que Orimoto faz do quotidiano com a mãe, dentro da casa onde vivem ou com amigos do bairro, marcadas por um humor muitas vezes desconcertante. Em Big Shoes (1997), um dos trabalhos iniciais dessa fase, a mãe aparece fotografada no meio da rua: uma bengala numa mão, um pequeno saco na outra, nos pés uns gigantescos sapatos verdes com lacinhos cor-de-rosa.

Noutro trabalho do mesmo ano, Art-Mama: In the Big Box, Orimoto coloca a mãe e outras figuras (uma amiga, ele próprio) dentro de uma grande caixa de cartão que está no meio da sala da casa tradicional japonesa onde vivem. Há fotos em que aparece de pé, ao lado da mãe sentada numa cadeira de rodas, os dois unidos por um boneco de peluche que ambos seguram. Ou ao lado dela, ambos sentados e cada um tendo ao colo um pão enorme. Outras imagens mostram-no a dar comida à mãe, ou simplesmente um abraço muito apertado.

Numa entrevista que deu em 2010, Orimoto explicou que usa sempre materiais baratos, de caixas de cartão a velhos bonecos, porque gosta de dar “uma última oportunidade aos materiais que estão prestes a ir para o lixo”. Quando o entrevistador lhe pergunta se nunca pensou calçar a mãe com sapatos de ouro, ele responde que não: “A vida dela pode parecer dura aos olhos do mundo, mas no meu trabalho ela aparece gloriosa.”

Os anos foram passando, Tatsumi e a mãe foram envelhecendo. No caso do artista, a passagem dos anos nota-se sobretudo no cabelo que foi ficando cada vez mais branco. A mãe, por seu lado, vai surgindo mais enrugada, numa cadeira de rodas, e com mais dificuldade em mover-se.

Em 2006, conta-nos Orimoto na conversa por e-mail, decidiu organizar um almoço para 50 avós — nessa altura, foi menos ambicioso do que na performance que vai acontecer esta semana no Alentejo — “para estabelecer comunicação com as pessoas mais idosas”. O almoço aconteceu em Kawasaki, a cidade onde vive no Japão, e a mãe esteve presente. Entretanto, houve outros Almoços com Avós, um deles em Liverpool, e outro, em 2008, no Museu de Arte de São Paulo, em que as convidadas foram imigrantes japonesas no Brasil. “Em todos os lugares estabeleci uma boa relação com as idosas”, afirma o artista. Mas, confessa, “500 avós, tanta gente, é a primeira vez”. “Vai ser uma obra muito importante na minha carreira, porque são muitas pessoas a estabelecer esta comunicação entre japoneses e portugueses”, diz.

A performance que acontecerá em Portugal será filmada e fotografada, e deverá dar origem a uma série de fotografias e a um vídeo que será depois apresentado em exposições dentro e fora do Alentejo, informa a organização da Trienal.

Sair à rua

A carreira de Orimoto começou nos anos 1970, nos Estados Unidos. Enviamos-lhe uma pergunta sobre como foi essa experiência, mas a resposta chega curta: “Foi aí que me apercebi da existência de arte como a de Nam June Paik e do grupo Fluxus.” O japonês, que em 1969 entrou no Institute of Art de Los Angeles, na Califórnia, sentiu-se desiludido com o que aí aprendeu — embora tenha apreciado o clima e o ambiente descontraído que encontrou. Ao fim de um ano, decidiu seguir os conselhos de um professor e mudou-se para Nova Iorque, onde conheceu o artista sul-coreano Nam June Paik, considerado o pai da vídeo-arte.

A amizade com Nam June Paik, que entretanto vendeu o seu estúdio a Orimoto, permitiu ao japonês cruzar-se com o grupo Fluxus — e com figuras como Joseph Beuys ou Yoko Ono —, que tinha um espaço de exposições no mesmo edifício. Foi um período decisivo para o percurso de Orimoto, que encontrou neste ambiente o espírito que procurava, e percebeu que a linguagem artística que melhor o servia não era a pintura, que tinha estudado, mas sim a performance. “Percebi que a arte não tem a ver com um objecto, e com formas”, escreve, numa das respostas ao Ípsilon.

No final da década de 1970, Orimoto regressou ao Japão, mas só no início dos anos 1990 nasceria a personagem que se tornou a sua imagem de marca: o Homem-Pão. “Fiz a minha primeira intervenção como Homem-Pão na Galeria K, em Tóquio. Mas só tive três pessoas a assistir, e portanto foi um fracasso. Percebi então que a arte tem de sair para rua e percorrer o mundo estabelecendo comunicação com as pessoas. Percebi que a arte tem de existir no espaço público, nas estações, nas ruas, nos restaurantes, fora dos museus e dos cubos brancos das galerias.”

Continuou à procura de uma linguagem própria, levando o Homem-Pão para as ruas — e para outros países. Para a performance, Orimoto amarra à cara vários pães (usa sobretudo baguetes), criando uma figura grotesca com um rosto aparentemente distorcido, mas com o humor que passa então a marcar o seu trabalho. E como reagem as pessoas quando são abordadas na rua pelo Homem-Pão? “Há diferentes reacções nos diferentes países. Em Inglaterra muitas pessoas riem, e as crianças andam à volta, e caminham ao lado do Homem-Pão. Na Suécia e noutros países do Norte da Europa, as pessoas são mais discretas, por isso fingem que não vêem o Homem-Pão e afastam-se. Em Tóquio, acham-no perigoso, por isso não querem estar ao pé dele.”

A figura nunca mais abandonou Orimoto (e virá também a Portugal, para uma performance em Lisboa, amanhã). Em 24 anos, o artista já levou o Homem-Pão a vários países e fez mais de 300 performances. Num texto publicado em 2001 no The Observer, a autora, Gaby Wood, descreve estas performances como uma espécie de teatro do absurdo: “Ele esteve na Turquia, no Nepal, na Alemanha e, com um fotógrafo, documentou cada momento: aquele em que foi perseguido por sem-abrigo em Nova Iorque, posto fora de um restaurante em Moscovo por desperdiçar comida; as vezes em que estudantes se riram dele ou em que os turistas o ignoraram quando posava aos pés do Big Ben.”

Mas, a certa altura, a vida sofreu uma reviravolta. Com a morte do pai, a mãe de Orimoto ficou sozinha e a precisar de cuidados e de atenção. Ele decidiu ficar a cuidar dela. E percebeu que era essa vida que queria transformar em obra de arte. “A minha arte é essencialmente realidade e comunicação”, explica ao Ípsilon. “Quanto à minha mãe, é co-produtora e a maior entusiasta do meu trabalho.” Vamos ver agora como é que as avós alentejanas reagem ao desejo de Orimoto de comunicar com elas. 

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