Angélica, uma história de assombração

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"O Estranho Caso de Angélica", de Manoel de Oliveira

Oliveira concretiza projecto com quase 60 anos. A antestreia mundial é amanhã, em Cannes

"O Estranho Caso de Angélica", que amanhã abre a secção Un Certain Regard, é a concretização de um projecto de Manoel de Oliveira com quase seis décadas, e talvez mesmo aquele que o realizador mais lamentava não ter podido realizar no tempo certo. A prová-lo está o facto de Oliveira se lhe referir quase sempre que evoca a sua aventura de cineasta no país de Salazar, quando se viu impossibilitado de realizar este e muitos outros projectos, e esteve mesmo longos períodos sem poder filmar. Mas está também a publicação da planificação de Angélica em livro, primeiro numa edição da Cinemateca Portuguesa (Alguns projectos não realizados e outros textos - Manoel de Oliveira, Lisboa, 1988), e depois em França, pela editora Dis Voir (Paris, 1998).

Inicialmente escrito em 1952, o argumento de Angélica foi inspirado num episódio real vivido pelo próprio Oliveira: um dia, quando se encontrava com a sua mulher, Maria Isabel Carvalhais, a passar um fim-de-semana numa aldeia do Douro, os dois foram chamados a visitar, numa casa próxima, uma prima que se encontrava muito doente. Tratava-se de uma jovem recém-casada, que padecia de uma gravidez extra-uterina, e que viria mesmo a morrer pouco tempo depois. Uma irmã dela pediu então a Oliveira que, com a sua máquina fotográfica Leica, registasse para a posteridade a beleza do seu rosto jovem...

Desta história nasce a sinopse do filme: "Isaac, jovem fotógrafo a residir numa pensão da Régua, é chamado a meio da noite para fazer uma última fotografia de Angélica, uma jovem que acaba de falecer. Na casa, onde a família prepara o velório, Isaac fica espantado com a beleza de Angélica. Quando se prepara para a fotografar, através da objectiva da sua máquina, a jovem parece regressar à vida, unicamente para ele, e Isaac apaixona-se profundamente. Angélica irá assombrar a sua vida até à exaustão."

Sem querer falar muito sobre o filme antes da estreia mundial em Cannes, Manoel de Oliveira confirmou ao P2 ter mantido o essencial da história, adaptando-a, contudo, aos dias de hoje. No tempo da Segunda Guerra Mundial - o protagonista da história é um refugiado judeu em Portugal -, "os judeus eram perseguidos pelos alemães, agora são perseguidos pelos muçulmanos, e o mundo continua em guerra", diz o realizador.

O fotógrafo de "O Estranho Caso de Angélica" é Ricardo Trepa, neto de Oliveira. Angélica é interpretada pela espanhola Pilar López de Ayala. "Ela faz uma Angélica excelente", diz o realizador.

Foi com o projecto de Angélica que Manoel de Oliveira - que até essa altura tinha apenas realizado "Douro, Faina Fluvial" (1931) e "Aniki-Bobó" (1942) - pela primeira vez pediu um subsídio ao Secretariado Nacional de Informação (SNI), organismo da propaganda do Estado Novo. O realizador nunca viria a receber qualquer resposta ("nem sim, nem não") à candidatura que lhe tinha sido sugerida pessoalmente pelo responsável do SNI na altura, José Manuel da Costa. "Uma história como esta não tinha nada que agradasse ao regime. Não lhe servia, nem do ponto de vista político, nem como distracção para o povo (...). Angélica passava certamente por um projecto niilista. O argumento deve ter-lhes parecido a denúncia velada de um governo totalitário que cortava as asas à liberdade", escreve Oliveira na apresentação da planificação na Dis Voir.

Depois de três anos de espera, o realizador decidiu frequentar um curso de utilização da cor no cinema na Alemanha. No regresso ao Porto, realizou o documentário "O Pintor e a Cidade" (1956), que se tornou no primeiro filme português a cores. Angélica ficara na gaveta, onde já estavam outros projectos originais não concretizados, como Bruma (1931), "Os Gigantes do Douro" (1934), "A Mulher Que Passa" (1938), "Prostituição" (1940) e "Saltimbancos" (1944).

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