Gus Van Sant tem um filme de morrer: "Restless"

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"Restless"

Um filme, um realizador, uma adolescente em estado terminal, um principezinho chamado Henry Hopper, filho de Dennis, a love story, o pânico da morte, um filme de morrer

Annabel e Enoch não se encontram em cafetarias, vão às morgues. Ela não lhe diz: "Vem ter comigo a seguir às aulas", diz-lhe: "Vem ter comigo à minha transfusão de sangue."

Annabel tem um cancro, terminal, na cabeça. Enoch é um principezinho que se encontra com os pais, mortos num acidente, no cemitério. Nos intervalos daquilo que lhe ocupa mais tempo: assistir a funerais. Pode ser mais gótico e romântico, mais fin-de-siècle, ainda por cima com música de Danny Elfman?

Pode. E não é só este duo, a Mia Wasikowksa de Alice de Tim Burton e o reconhecível sorriso embaraçado com a sua própria fragilidade que Dennis Hopper legou ao filho Henry. É um trio. Falta falar, a propósito desta love story em cemitérios, deste improvável par, à laHarold and Maude (Hal Ashby, 1971), no fantasma de um kamikaze japonês da II Guerra Mundial. É o amigo de Enoch. (Se não tivermos medo e quisermos reparar em todos os fantasmas, não poderemos esquecer tambem Elliot Smith, Nico e These Days...)

Adolescência e morte, estava tudo em anteriores incursões de Gus Van Sant com as quais nos proporcionou as suas experiências mais atmosféricas e, aceite-se a repetição, mais experimentais. Era a morte, o fascínio, a morbidez, o horizonte para as suas personagens: Gerry, Elephant, Last Days... Convivia-se com..., sentia-se..., mas não se olhava directamente para... a morte.

Restless, o filme que abriu a secção Un certain regard, é uma certa forma de olhar, de enfrentar o pânico e encarar de frente. Faz sentido, por isso, que não se encontre aqui o aparato atmosférico de Van Sant, aquela forma oblíqua de fazer sentir. E que, na sequência de Milk (que era uma forma assumidamente clássica, à la Frank Capra, de contar uma história "alternativa"), tenha escolhido uma forma conciliatória e mais reconhecível, a bolha do romantismo, transformando Portland num cenário de filme de género: a Americana gótica, com direito a festa de Halloween e tudo.

Como forma, também, de superar a divisão que marca o seu percurso, de um lado a exploração, o formato mainstream do outro - e este filme chega-nos como produção de Bryce Dallas Howard e do seu pai, Ron Howard, figuras de um imaginário típica e utopicamente americano.

Pequeno estado de graça

Restless, filme verdadeiramente de morrer, é algo da ordem da superação. Não é nenhuma das oposições que convivem no cinema do realizador, é uma terceira coisa, e aí este filme é um pequeno estado de graça. Das coisas mais bonitas, por exemplo, é ver Gus Van Sant trabalhar a conciliação para se fazer à imagem do trabalho sobre a restlessness, a inquietude dos seus adolescentes, para estar com eles e não fazer apenas um filme sobre eles - como Annabel, darwinista convicta, fascinada por uma espécie de pássaros que adormece para morrer e que quando acorda canta furiosamente por se ter descoberta viva. Mesmo que estejamos todos still dying, como diz Annabel, que delicada maneira de morrer. Em cinema, pelo menos.

Pensamos em Gus Van Sant, no seu Elephant, quando vemos We Need to Talk About Kevin, de Lynne Ramsay, escocesa que chega à competição de Cannes depois de ter passado pela secção Un Certain Regard, com Ratcatche, e Quinzena dos Realizadores, com Morvern Callar. Isto porque há um adolescente que entra na escola e assassina, com arco e flecha, os colegas (Ezra Miller, o adolescente de Afterschool, de António Campos, cresceu e o seu olhar de aviso tornou-se mais intimidante).

O filme quererá filmar uma personagem (a mãe, Tilda Swinton) e a família onde o "monstro" (é assim que o filme o mostra, não há forma de escamotear a questão) cresceu e os efeitos da tragédia sobre esse mundo. Filme escatológico, obcecado pelos restos, está encadeado nos seus próprios efeitos; a realizadora acredita que está a fazer "arte", mas a verdade é que durante a meia hora inicial o espectador não sabe o que está a ver. A não ser que é coisa grosseira. O elefante aqui é Lynne Ramsay.

De nada disso pode ser acusada a britânica Julia Leigh, com uma primeira obra na competição, Sleeping Beauty, que chega com a marca de Jane Campion presents.... A australiana tomou-se de amores por este filme, e por isso apadrinhou-o, em que uma universitária (Emily Browning), já iniciada na prostituição para pagar o apartamento e os estudos, entra para uma rede de "belas adormecidas": uma droga, adormece e o corpo fica disponível (menos, garantem-lhe, para penetração). Sim, a realizadora, também romancista, leu Kawabata. A assinalar: a forma como Julia expurga o filme de romanesco, abandonando, e abandonando-nos, à passividade da personagem, o que está tudo dito naquele plano inicial em que a jovem se submete, por dinheiro, a uma experiência científica.

A frieza faz tangentes ao cinema de Robert van Ackeren, por exemplo. A lamentar, ainda assim: que Julia Leigh não se tenha mantido (medo de não aguentar assim o filme?) nessa zona amoral, traindo a forma como arrancou Sleeping Beauty, e assim traindo-nos também, ao passar para os "clientes" e para as suas razões e ao dar a ver o que a personagem não pode ver. É que na ritualização da palavra e no erotismo Julia é uma realizadora bem mais banal.

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