Elas são o verdadeiro rosto do Irão

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Ao contrário de outros países muçulmanos, as mulheres iranianas têm um papel activo na sociedade, conduzem e votam. Mas aos olhos da lei islâmica, permanecem inferiores aos homens. O véu simboliza essa discriminação

Em 2007, para celebrar o 60º aniversário do Festival de Cannes, Abbas Kiarostami realizou "Where is my Romeo?", uma curta-metragem que ?gurou no ?lme colectivo "A Cada Um o Seu Cinema". O realizador deteve-se sobre rostos de mulheres numa sala de cinema onde se projectava "Romeu e Julieta", e do qual só ouvimos a banda sonora.

Em 2009, "Shirin" retoma e desenvolve essa ideia original substituindo os "amantes de Verona" pela lenda de Khosrow e Shirin. Citada no "Livro do Reis" de Ferdowsi [poeta persa do século X], esta narrativa de amor cortês foi convertida, no século XII, num longo poema épico por Nemazi [considerado o maior poeta romântico da literatura persa].

Para realizar o seu ?lme, Kiarostami reuniu 114 actrizes à frente de um ecrã branco. O jogo sobre o verdadeiro e o falso que de?ne a sua obra depara-se com esta con?guração particular. "Shirin" pode ser visto como um documentário sobre o trabalho de actriz, cujas emoções são ao mesmo tempo enganadoras e reais. Apesar de estar desprovida de imagens, a longa-metragem [a que as actrizes supostamente assistem em "Shirin"] possui uma banda sonora de extrema precisão que foi concebida "a posteriori".

Ela alterna as cenas de batalha e as juras de amor e permite seguir a história do rei sassânida [dinastia persa] e da princesa arménia. Não ver neste dispositivo mais do que um jogo seria redutor. Todos estes rostos revelam uma verdade do Irão. Com efeito, diferentes gerações de mulheres estão presentes, todas portadoras de uma história simultaneamente pessoal e colectiva.

Não é a primeira vez que Kiarostami dirige um ?lme convocando mulheres. Ele já o tinha feito com "Ten" (2002), que inaugurou um novo género no cinema iraniano - o dos filmes de mulheres. Seguiram-se outras obras, como "O Círculo" ou "Of side", "The Exam", de Nasser Refaie, ou "Women Without Men", de Shirin Neshat, apresentado em Veneza em Setembro de 2009.

Apesar de ter sido rodado fora do Irão, este último ?lme não é menos representativo de um forte movimento no cinema iraniano. Se a condição das mulheres no Irão suscita tais ?lmes, é porque o tema se presta a um paradoxo surpreendente. Ao contrário de outros países muçulmanos, as mulheres iranianas têm um papel activo na sociedade, conduzem e votam. Nos últimos 10 anos, elas tornaram-se maioritárias nas universidades. Mas aos olhos da lei islâmica, elas permanecem inferiores aos homens. O véu simboliza essa discriminação.

A primeira manifestação que se seguiu à revolução de 1979 foi de mulheres contra o uso obrigatório do véu, a 8 de Março de 1979. A lei só entraria em vigor em 1982, dada a forte resistência. Em 1992 surgiu o primeiro jornal feminista, "Zanan", que viria a ser proibido em 2008. 2006 vê o lançamento da "Campanha de um milhão de assinaturas", que reivindica a igualdade entre homens e mulheres no seio da sociedade iraniana. Inúmeros intelectuais e universitários participam na campanha, incluindo Zarah Rahnavard, mulher de Mir- Hossein Moussavi, o qual viria a reclamar a vitória nas últimas eleições presidenciais contra Mahmoud Ahmadinejad.

Se Neda Agha-Soltan, morta nas ruas de Teerão a 20 de Junho de 2009, se converteu no símbolo de uma possível mudança no Irão, é porque ela representa tudo o que o regime rejeita: uma mulher moderna, instruída, e que reivindica os seus direitos. Porém, foi esse mesmo regime que contribuiu, sem o saber, para a tomada de consciência das mulheres. Tranquilizadas pelo uso obrigatório do véu, as famílias tradicionalistas do Irão aceitaram enviar as suas ?lhas para a universidade. Foi assim que as mulheres dos estratos populares tiveram acesso a uma formação superior. Por outro lado, a explosão demográ?ca levou o Estado a encorajar a contracepção. A idade média do casamento no Irão é hoje 26 anos e o número de ?lhos por mulher passou de seis a dois em 30 anos. O Irão tem imensas mulheres escritoras, jornalistas, realizadoras. Bem mais do que os seus dirigentes conservadores, elas são o verdadeiro rosto do Irão estas "?lhas da revolução".

Agora que a placa de chumbo voltou a abater-se sobre o Irão, as lágrimas das espectadoras de "Shirin" são as lágrimas das mães e irmãs que se lembram do que o país viveu no último ano. Mas a resistência continua. No ?m do ?lme, uma espectadora sorri. Ela sabe que a situação irá mudar e que o Irão será uma república plena e inteira que não terá outro nome: iraniana.

*Crítico de cinema, iraniano, residente em França, é autor de "Chris Marker" (Cahiers du cinéma-CNDP, 2003), "Godard neuf zéro, les films des années 90 de Jean-Luc Godard" (Séguier-Archimbaud, 2006), "Wong Kar-wai, la modernité d'un cinéaste asiatique" (Amandier-Archimbaud, 2007).

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