"Ele punha as pessoas a pensar. Devemos-lhe muito"

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José; Pilar e Miguel Susana Paiva

"José e Pilar": uma história de amor entre um português melancólico e uma intempestiva andaluza. Mas é também, diz-nos o realizador Miguel Gonçalves Mendes, um espelho que nos confronta, espectadores, portugueses

Há um momento, e não é longe do início de "Pilar e José", em que o filme parece logo coisa ganha: quando a angústia do escritor Saramago perante a página em branco - cliché na nossa cabeça - se transforma numa batalha lúdica do jogador Saramago com a paciência - o jogo da... O que Miguel Gonçalves Mendes, 32 anos, revela aí é a determinação de construir uma cena como numa ficção. Isso vai tendo oportunidade de se mostrar ao longo do documentário, através da ironia, da cumplicidade e da admiração perante as personagens José e Pilar. E também esculpindo na montagem um espelho que nos confronta, espectadores, portugueses.

Um dos primeiros planos do filme é hoje estranho: José Saramago diz "Pilar, encontramo-nos num outro sítio". Parece um plano do "lado de lá". Em que momento da rodagem esse plano aconteceu? E tem um sentimento diferente hoje, quando sabemos que Saramago morreu?

Acho que o sentimento da altura e o de hoje é o mesmo. A temática da morte interessa-me muito. É uma obsessão que tenho de resolver. Claro que no caso do José a contagem descrescente estava lá, era um problema efectivo.

O que lhe propus foi a coisa mais idiota: "José, imagine que acontece um cataclismo, o que é que dizia à Pilar como última mensagem?" E ele disse aquilo...

Hoje tem uma ressonância diferente.

Claro que sim.

Mais: há aquele chamamento mútuo, "Pilar, Pilar...", "José, José...". E a voz "off" de Saramago: "A voz de alguém que sente despegar-se da vida...". Era evidente a ideia de alguém que se despedia?

Não no sentido em que era no caso do Mário [Cesariny, objecto do documentário "Autobiografia", 2004]; aquilo, sim, era um testamento. O que aqui havia era a noção clara de que o tempo dele estava a acabar. Nunca no filme ele se comportou como se estivesse a deixar um legado. Mas sabia que daqui a cinco ou dez anos o "game over" estava ali.

Quando adoeceu a primeira vez, e toda a gente temeu que isso podia acontecer, isso, sim, mudou a leitura do filme. Vivi sempre a rodagem com varios pesos em cima, e um deles era a possibilidade de ele morrer. A montagem durou ano e meio, e eu estava com medo. Tentámos acelerar. Queria que ele partilhasse connosco a estreia, e tinha medo de ser acusado de oportunismo. Mostrei a primeira versão de três horas à Pilar e ao José. Várias vezes tive medo das opções, o ter eliminado todas as entrevistas e a ausência de um discuro mais filosófico e político da parte dele...

Porque é que eliminou, já agora?

Inicialmente baseei o trabalho em oito horas de entrevistas ao José e à Pilar sobre a vida, a morte e o trabalho. Mas eu não queria repetir fórmulas, o pensamento do Saramago está mais do que difundido. O que faltava era o registo intimista, aquilo que ele é com esta mulher.

Há uma coisa que ele diz nessas entrevistas, que não está no filme mas acho muito bonito: somos mata-borrões, somos impregnados pelo outro, deixamos de ser quem somos e passamos a ser nós com o outro; por isso é que nas separações o mais difícil não é um separar-se do outro, é a separação da terceira pessoa que ambos criaram. Portanto, para fazer um filme sobre ele, eu tinha de fazer um filme sobre ela. Para além de que a Pilar é uma figura incompreendida, alvo de juízos de valores ordinários, e interessou-me quebrar isso...

Estava a dizer que a montagem tinha sido complicada...

Quando mostrei a versão de três horas, o Saramago disse-me: "Miguel, muitas vezes quando estavas a filmar não percebia o interesse daquilo, mas hoje que vejo acho que o filme é mais do que só sobre nós os dois, é um filme sobre a vida e as relações". Foi o maior elogio, porque era isso que me interessava: que o filme ultrapassasse o patamar da elegia e fosse sobre o que nos faz estar aqui. E virou-se para a Pilar e disse: "Este filme é uma dedicatória de amor à tua pessoa". E ela respondeu: "Sim, mas a minha vida também é". E é. Para além do companheirismo, da luta comum, aquele amor era de uma lucidez...

O que é que lhe interessou em Saramago e o que é que acha que interessou a Saramago?

Acho que ele foi enganado [risos]. Propus-lhe fazer um retrato intimista de uma relação, e ele disse logo que a intimidade dele era a intimidade dele. Expliquei-lhe que não seria voyeurista, que queria perceber o quotidiano. Fui insistindo, ele viu o filme sobre o Mário, e disse uma coisa lindíssima: "Miguel, tenho é medo de não dizer coisas tão interessantes como o Mário disse."

O que é que lhe interessava? Ele achava que eu era um repórter a fazer mais um documentário. Mas percebi rapidamente que o tempo de rodagem tinha de ser outro. Eles eram duas figuras públicas que sabiam muito bem lidar com a câmara, tinham as defesas todas, e se eu queria chegar ao âmago tinha de ser estabelecida uma relação de confiança total. Não podia ser uma rodagem de dois meses. Ou ficaríamos pela rama.

Comecei por acompanhá-los nos eventos públicos e nas viagens e eles começaram a perceber que o que eu estava a filmar não era normal. Criámos uma relação especial. Quando cheguei a Lanzarote, as portas estavam abertas. Fui deixando nas entrelinhas que o que me interessava era fugir ao documentário do homem e da obra e criar uma narrativa com espessura clássica: esta é a história de um homem que quer escrever um livro e depois adoece e tem medo de não conseguir acabar o livro, mas escreve e depois ainda escreve outro, e por acaso é prémio Nobel...

... sim, a questão da obra é irrelevante. Mas o que é que lhe interessou em Saramago? Já agora: o que é que lhe interessou em Cesariny?

Li na adolescência os livros do Saramago. Gosto muito da forma como escreve as personagens, o bem e o mal habitam em nós. Quando toda a gente o acusava de ser panfletário, eu achava-o humano, modelado e sereno. O que me levou a fazer o filme? Conhecê-lo pessoalmente, o filme foi uma desculpa. Foi assim com o Mário...

No caso do filme sobre o Cesariny você aparece no ecrã, a relação entra pelo filme. Com Saramago foi diferente...

A minha existência no filme sobre o Cesariny prende-se com o facto de o filme ser o resultado da relação entre um miúdo que na altura tinha 24 anos com a pessoa que ele admirava. É um filme sobre solidão e eu era uma companhia para o Mário. O José estava acompanhado por aquele amor. Mas há nos dois filmes um lado meu de ingenuidade que colocou aquelas pessoas à vontade.

Há uma coisa de que gosto muito no Saramago e que pratico na vida: não idolatro ninguém e estabeleço relações com as pessoas em patamares de igualdade. O Saramago ou a senhora do mercado... Ele também não tinha qualquer tipo de subserviência. Isto cria uma relação de igual para igual, sendo que o meu olhar sobre o mundo é mais ingénuo e isso para eles poderá ser carinhoso. A relação que se estabece é honesta, não há nenhum tipo de luta de egos.

Por quanto tempo se estendeu o filme, da rodagem à montagem?

Quatro anos.

E só a montagem ano e meio. Problemas de produção?

Não só. Devido também à quantidade de material.

Precisamente: o filme apresenta um recorte muito nítido, um olhar definido sobre o que quer. Há um momento, no início, em que se percebe essa definição: quando Saramago se senta ao computador, prepara o ritual - põe um disco - do que parece ser um dia de escrita e... e afinal era apenas um jogo de paciência...

As pessoas constroem clichés, e eu queria quebrar o cliché. Eu sabia que ele jogava paciências, achava isso maravilhoso, ia lá a casa e via-o jogar. Portanto ia criar o "setting"... eis o momento triunfal da entrada do escritor, a página em branco e tal... e de repente está a jogar paciência...

Outro momento, este embaraçoso, do encontro com os estudantes...

Eu já sabia que caras é que ele fazia perante admiradores e fãs. O que me interessava era o outro lado, como os fãs lidam com ele. Daí a colocação da câmara naquela posição, por trás dele.

Eu já calculava que aquilo ia acontecer. Eu já tinha assistido a comportamento daqueles. Queria que o filme fosse um confronto de todos nós, fãs, jornalistas, pessoas que pedem autógrafos... com a nossa imagem. Temos tendência a romantizar as coisas. Mas a beleza reside na humanidade das coisas e não na tentativa de florear a realidade.

Havia um roteiro para as cenas? Por exemplo, quando Saramago, no carro, fala sobre Deus, aquele cepticismo orgulhoso: estou sozinho, mas quero estar sozinho...

Não lhe dizia: hoje vamos conversar sobre isto. Antes dessa sequência tínhamos ido filmar umas imagens perto de uma igreja, repleta. Ele começou a dizer: "A igreja estava cheia, cheia de fiéis para ouvir o padre". A conversa partiu daí, embora haja uma série de perguntas que fiz que não estão na montagem. Eu queria que as pessoas não sentissem que estavam a ver um documentário. Queria dar um passo ao lado e limpar da imagem qualquer relação deles directa com a câmara. O filme foi isso: um processo de limpeza. Se uma reunião de trabaho deles tinha três horas, eu filmava tudo. Depois tratava de encontrar os momentos em que eles se tinham esquecido da câmara.

Quando Saramago adoece, Pilar toma as rédeas no documentário. Como é que a doença perturbou a rodagem do filme?

Trouxe também coisas bonitas... Chegámos a Lanzarote, para a passagem de ano, e ele tinha sido internado no dia anterior. Filmámos a família em casa, a situação estava grave. Acabei por visitá-lo naqueles dias, e ele disse que andava a ter sonhos estranhíssimos, por causa do espaço e das luzes. Basicamente, colmatei a ausência dele com a recriação dos pesadelos dele, que para mim é das coisas mais bem conseguidas no filme. E depois a forma milagrosa, palavra um bocado estranha...

... provavelmente ele não iria gostar...

... [risos] como se deu a recuperação.

Quais foram os dilemas na montagem?

Havia várias coisas que me preocupavam: o escritor e Nobel, a Pilar, que é uma pessoa frontal e intempestiva - ele é muito português, mais melancólico -, o que para nós portugueses causa problemas, pelo nosso moralismo barato. E depois a relação com Portugal, que me interessava, e a questão internacional, o filme não podia ser bairrista. Houve várias coisas que começaram a pesar, e também a pressão dos produtores internacionais [a O2 Filmes do brasileiro Fernando Meirelles e a espanhola El Deseo] por causa dos prazos. Mas ninguem meteu o bedelho.

Passar 240 horas para duas horas é uma tarefa que não desejo ao pior inimigo. Passámos cinco meses a ver o material, fiz uma primeira montagem cronológica. Ninguém esperava que ele, naquele momento, tivesse a ideia para a "Viagem do Elefante". O filme passou a ser sobre o livro. Do momento da escrita até ao lançamento no Brasil - era assim que o filme começava e acabava. Depois foi dilatado no tempo por várias circunstâncias, porque ele adoeceu, porque houve a recuperação. Na montagem fizemos uma primeira versão cronológica, depois fiz uma versão de seis horas, que é a minha preferida, mas que era impossível de ir parar às salas ou onde quer que seja. E depois foi a luta de cortar. E o filme começou a ganhar narrativa própria. E só parei a montagem porque se se começa a polir demasiado, o diamante começa a perder a forma. Aí decidi parar. Mas ainda hoje não sei se o que ficou de fora é pior ou melhor do que o que ficou no filme.

Há um "caso Saramago" e há um "caso Portugal" em "Pilar e José". Aquela sequência em que "Ensaio Sobre a Cegueira" de Meirelles passa em Cannes e continua a ser dia de futebol na TV portuguesa... E abrem-se portas em relação à percepção pública do Saramago: uma doçura que não se conhecia.

Sim, mas esse era o Saramago que eu achava que haveria. Não era só o filho da mãe comunista, ateu e traidor à pátria. Portugal é um pais complicado. Somos injustos. O que não se perdoou ao Saramago foi que ele tivesse sucesso. Veio de família pobre, não pertencia às elites, começa a escrever aos 60 e aos 80 ganha o Nobel. De onde veio este tipo? Isso não se perdoa. E como o sucesso do outro espelha a nossa inacção, começámos a destruir o outro para nivelarmos por baixo. É sempre um processo de destruição colectiva. A puxar o país para baixo.

O Saramago era polémico. Há coisas que ele defendia e com as quais não concordo. Não suporto, por exemplo, qualquer teoria iberista. Agora, era um provocador nato. E temos que agradecer aos deuses. Quando ele escreveu "Caim", em 2010, tivemos em horário nobre na TV teólogos a discutir a existência de Deus. Isso não é um privilégio numa época de estupidificação total? Não devemos agradecer por isso? Ele punha as pessoas a pensar. Devemos-lhe muito.

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