Yussuf quando for pequeno

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"Mel" encerra a "Trilogia Yussuf" de Semih Kaplanoglu. Continuamos a andar para trás: depois de já ter sido quarentão e adolescente, Yussuf é agora um miúdo em crescimento na Turquia rural. O princípio, diz Kaplanoglu, é aquilo que fica connosco até ao fim

Depois de "Yumurta" (2007), regresso de um poeta à sua terra natal após a morte da mãe, e de "Süt" (2008), retrato de um adolescente dividido entre a escrita e o pobre trabalho que sustenta a sua família, Semih Kaplanoglu fecha a sua trilogia sobre Yussuf (personagem que é também o seu alter-ego) com "Mel", retrato da emancipação de uma criança na Turquia rural, que foi Urso de Ouro em Berlim em 2010.

Continuando a olhar para trás, Kaplanoglu mostra-nos desta vez a infância em estado puro que guardamos pela vida fora: a curiosidade da descoberta dos sentidos, a vontade da expressão individual e a timidez que a impede de se soltar, e o eterno elo de admiração da criança pelo seu pai, sob o olhar atento da mãe. O pai de Yussuf, apicultor, procura novas fontes de mel para o sustento familiar, pequenas incursões feitas na companhia do filho, de olhos e ouvidos abertos para cada gesto. Mas será após uma partida solitária para longe que, na ausência da referência paterna, os sentidos de Yussuf se abrirão mais ao confronto entre o isolamento interior no seu diminuído lar, o encontro com as palavras na escola e o puro estado da natureza que circunda a casa. Há um mundo que o chama e que ele abraça, na descoberta da vida e da ausência.
"Em 2005", diz-nos Kaplanoglu, "escrevi um conto sobre um aspirante a poeta de 18 anos que vivia no campo e enviava os seus poemas a jornais literários [segmento da história que filmaria em "Süt", segunda parte da trilogia]. Mas perguntei-me o que aconteceria a essa personagem na sua idade adulta e na sua infância, se poderia continuar a escrever poemas com 40 anos de idade ou se teria de fazer outra coisa para ganhar a vida".

A história da "Trilogia Yussuf", que tem o seu ponto alto em "Mel", é, portanto, a do crescimento invertido de um homem que foi criança, a de um longo caminho de emancipação face à presença espiritual do pai e o amor presente da mãe. A luta de Yusuf pela independência confunde-se com a procura da sua forma de expressão no mundo - a poesia e o uso das palavras. "Ao falar com Orçun, o meu co-argumentista, e com Hande, o meu montador, pensámos numa trilogia", diz-nos o realizador. É uma trilogia ao contrário: "Decidi começar do ponto que conhecia melhor - os 40 anos -, por estar a passar por problemas semelhantes [retratados em "Yumurta"]. Depois de uma certa idade, concentramo-nos mais no passado do que no futuro, talvez por haver uma aproximação à morte ou porque o tempo que já vivemos ser maior do que aquele que vamos viver", explica.

Atrás da cortina

Além de um reflexo dos seus dilemas posteriores, a infância de Yusuf é também a descoberta do mundo que alimentará os sentidos: a imensa floresta onde se situa a sua casa abre o caminho para a aprendizagem das sensações e das palavras que as descrevem. Apesar de ser o último filme da trilogia, "Mel" é também o primeiro: os outros dois filmes começam aqui, quando Yusuf era pequeno.

Mas dizer Yusuf é outra maneira de dizer Semith. A poesia não é apenas a forma de expressão do protagonista: é a forma de expressão do próprio realizador. "Uso um método de simplificação nos meus filmes que aprendi com a poesia. Penso muitas vezes em como tornar a poesia relevante numa forma de arte como o cinema. A expressão poética dos meus filmes é uma consequência desse esforço", diz ao Ípsilon. Toda a "Trilogia Yussuf" revela uma paciente busca do tempo certo de expressão, uma relação cuidada entre a exposição de um sentimento e a escolha de adereços e de palavras numa paisagem natural de imagens. "A poesia é aquilo que fazemos das nossas experiências a partir do que guardamos na nossa linguagem. Não se trata só de colocar os nossos sentimentos em palavras, tem também a ver com o silêncio."

Através da infância de Yussuf, Kaplanoglu tentou ir ao encontro do sentido inicial que se perde ao longo da vida. "A vida põe uma cortina à frente dos nossos sentidos, impede-nos de tocar, cheirar e ver. Quando fiz o filme, tentei encontrar uma maneira de remover essa cortina, queria descrever não só a infância de Yussuf mas também a da humanidade. Pensei muito em como descrever essa pureza, pois julgo que a perdemos nas nossas relações. Falamos muito não por nos darmos bem, mas porque não conseguimos estabelecer uma verdadeira ligação uns com os outros", sublinha.

O esforço do realizador turco passa também por um método de filmagem assente ainda nas suas formas naturais: sem pós-produção, através de uma rodagem integrada no seu ambiente natural - a província de Rize, na Turquia -, procurando uma conjugação natural de luz e vida nos elementos que compõem a imensidão da paisagem e da floresta. "Interesso-me muito pela natureza", afirma o realizador, "observo-a e tento envolver-me com ela. O sentido do tempo, o nascer e o pôr do sol, as estações, tudo isso tem um efeito em mim. Sinto que não consigo criar se não traduzir isso naquilo que faço."

Todo o seu trabalho vai no sentido de uma necessidade de espiritualidade e de depuração que é o contrário da vida moderna, urbana que nos aliena dos sentidos. "A nossa percepção não está apenas relacionada com o cinema, depende também da quantidade de poesia que lemos, do nosso envolvimento com a arte e a filosofia, e da nossa relação com a espiritualidade. A vida moderna não nos permite questionar a nossa existência e a criação, há uma indolência dominante em relação a isso", argumenta Kaplanoglu. 

Um cinema da esperança

Os contornos da "Trilogia Yussuf" relembram os de uma outra descoberta - a do mundo de Apu, jovem personagem do cinema do indiano Satyajit Ray. Também Apu era um aspirante a escritor dividido entre um profundo e desejo de criação e as responsabilidades da vida diária, de que depende a sobrevivência familiar. A procura de uma paz de espírito entre os acessórios materiais da vida é comum ao cinema de Ray e Kaplanoglu. Contudo, é num cinema mais metafísico e já distante de Ray que Kaplanoglu acaba por encontrar as suas influências mais decisivas. "'O Espelho' (1975), de Tarkovski, teve um grande impacto em mim: as sementes e as ideias do que queria fazer no cinema vêm daí, tal como de 'Andrei Rublev' (1966)", diz o realizador. "Foram filmes que marcaram a minha relação com o cinema."

Mas se é o movimento de Tarkovski que marca o tempo do cinema de Kaplanoglu e a sua busca de abstracção, o realizador turco refere ainda a porta aberta pelos filmes de Ingmar Bergman: "Ao criar as minhas personagens, fiz referência à forma de ver de Bergman. Ele coloca as questões mais substanciais e dolorosas sobre a existência do homem moderno. Os seus filmes provam que o cinema pode contar a história da sua insuficiência espiritual, não apenas vagueando pelos corredores sombrios da alma humana, mas dando-nos uma esperança que faz parte do mundo e que nos leva para a própria essência da criação."
Como Bergman, Kaplanoglu vai até à raiz de uma vida. Na sua inocência, Yussuf mostra-nos que aquilo que nos forma nunca nos abandonará. Ele sabe que poderá sempre encontrar aquilo que procura na árvore onde o pai ia buscar o mel para levar para casa.

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