A história é tudo para Ed Lachman

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Ed Lachman sente-se hoje muito próximo dos cineastas com quem dirigiu os seus últimos trabalhos - Ulrich Seidl e Todd Haynes Adriano Miranda

Em Vila do Conde, onde passou uma semana como jurado do Curtas, o director de fotografia de Todd Haynes, Sofia Coppola ou Steven Soderbergh falou-nos do seu papel como tradutor, em imagens, das histórias que o realizador quer contar

Muitos directores de fotografia sabem contar uma história, talvez até melhor do que os realizadores com quem trabalham, porque têm mais experiência e trabalham mais regularmente. Mas é preciso ter uma história para se contar."

Ed Lachman, 64 anos, responde-nos assim quando lhe perguntamos porque é que, numa longa e prestigiada carreira como director de fotografia, apenas tem em nome próprio um único filme de sua autoria (Ken Park, co-assinado com Larry Clark), ao contrário de muitos profissionais do mesmo ofício que tentaram a sorte como realizadores. E a resposta do norte-americano é exemplar do rigor que, pouco antes, tinha acabado de pôr em prática: sabendo que uma entrevista iria ser filmada para os arquivos do Curtas Vila do Conde, onde foi jurado da competição desta edição, não hesitou em explicar à equipa como iluminar o espaço para obter o melhor resultado final.

"Sempre fui muito rígido, muito duro comigo próprio relativamente a dirigir uma longa-metragem, até me sentir completamente seguro da história que quero contar", explica Lachman. "É por isso que neste momento estou mais interessado em instalações visuais ou trabalhos puramente com imagens. Tem também a ver com o tempo que leva montar um filme. Há tantas armadilhas que prefiro saír à rua e fazer qualquer coisa com uma câmara em vez de estar anos à espera de financiamento para uma longa-metragem."

É esse espírito de independência que identifica Lachman com os cineastas da "renascença" do cinema independente americano dos anos 1980 e 1990. A lista de realizadores com quem trabalhou fala por si: Susan Seidelman (Desesperadamente Procurando Susana, Homem Certo, Precisa-se), Todd Haynes (Longe do Paraíso, Não Estou Aí, Mildred Pierce), Steven Soderbergh (O Falcão Inglês, Erin Brockovich), Sofia Coppola (As Virgens Suicidas) ou Mira Nair (Mississippi Masala), para apenas citar alguns, a par de veteranos como Paul Schrader (Light Sleeper, Touch), Wim Wenders (Nick's Movie, Tokyo-Ga) ou Werner Herzog (La Soufrière). E, claro, o "papa" do cinema independente americano, Robert Altman, com quem trabalhou no seu último filme, Bastidores da Rádio.

Essa apetência pela independência - e pelo cinema europeu, onde também trabalhou regularmente, com cineastas como Bertrand Bonello ou, mais recentemente, o austríaco Ulrich Seidl - tem a ver, explica-nos, com a sua própria procura enquanto artista. "Respondo mais ao cinema europeu e ao movimento independente americano porque creio que procuram uma linguagem própria, vêm de uma tradição mais artística. Quando se está em Espanha, ou em França, ou na Alemanha, existe uma história cultural muito rica, mais visual, enquanto nos EUA vimos de uma tradição literária do século XIX. Na Europa, escreve-se mais de uma perspectiva visual. E estou sempre à procura de tentar contar a história usando uma gramática visual."

Dá o exemplo de Não Estou Aí, a fragmentada fantasia de Todd Haynes sobre Bob Dylan, que define como um dos trabalhos que mais prazer lhe deram. "O Todd pensou em Dylan como se fosse um actor desmultiplicado em várias personas. Que, no fundo, era o que a sua imagem e a sua música eram. Filmámos em todo o tipo de películas: super 8, 16mm a cor, 35 mm a cor e a preto-e-branco, a tentar referenciar filmes da época." O desafio era, além do mais, irrecusável: "Tentar recriar o visual do cinema europeu, da Nouvelle Vague, do Masculino Feminino de Godard ou do 8 ½ de Fellini, e depois recriar o western revisionista dos anos 1970, filmes como Duelo na Poeira, de Peckinpah, ou A Noite Fez-se para Amar, de Altman. A ideia era usar a cor não como a vemos hoje, mas como se podia ver naquela altura."

A aula do risco

É precisamente essa investigação, essa busca, que para Lachman define o seu papel enquanto director de fotografia: "Fazer o interface com o realizador e o director artístico para criar a linguagem do filme, que tem de ser uma linguagem intrínseca à narração. Precisamos de encontrar o que torna a história única no modo como é contada, sem referenciar outros filmes ou outras linguagens que não lhe sejam inerentes. O nosso papel, ao criar imagens para contar histórias, é descobrir o que lhes é único ou específico."

Ao definir assim o seu papel numa rodagem, Lachman está igualmente a explicar porque, enquanto director de fotografia, nunca transportou uma "marca registada" de filme para filme, um sinal estilístico que identifique o seu trabalho. "Nunca senti que precisasse de a criar. Estive sempre mais interessado em explorar modos diferentes de contar histórias visualmente. Venho da pintura e talvez isso venha de ter estudado várias escolas de pinturas, várias culturas, e o modo como elas se representam em imagens. O meu trabalho não seria tão interessante se tentasse usar uma linguagem comum para criar histórias diferentes."

Essa procura da diferença não é gratuita, mas antes articulada com cada realizador com quem trabalha. "Todos os realizadores são diferentes no modo como contam as suas histórias; alguns são visuais, outros não. Se alguém tem uma linguagem diferente, como o Ulrich Seidl, o Wim Wenders ou o Todd Haynes, digo que tento contribuir o mais possível para a linguagem deles." E dá o exemplo da literatura: "Na literatura podemos entrar no mundo interior de uma personagem, mas passamos frases e parágrafos a ler a descrição do local. No cinema, que é um meio visual, o problema é o oposto: podemos mostrar o local, o espaço, mas é muito difícil mostrar o mundo interior das personagens. Por isso, estou sempre muito à procura de explorar com o realizador, ou quando faço os meus filmes, o modo de entrar nesse mundo interior."

Isso implica correr riscos - e, para Lachman, sem riscos é impossível fazer algo de único ou de interessante na história que se está a contar: "Acho que os cineastas mais interessantes são os que correm mais riscos, e por vezes o seu falhanço é mais interessante do que o seu sucesso." Mas o director de fotografia não anda atrás do desafio pelo desafio: "Acontece apenas que trabalho com realizadores exigentes, exigentes para consigo próprios e para com os seus actores e colaboradores." É por aí que explica como, neste momento, se sente muito próximo dos cineastas com quem dirigiu os seus últimos trabalhos: o austríaco Ulrich Seidl, com quem rodou Import/Export e a trilogia Paradise (cujo primeiro episódio, Paradise: Love, estreou em Cannes há dois meses) e Todd Haynes. "Gosto muito de trabalhar com o Ulrich: o modo como ele cria as suas imagens está muito próximo de mim. Fazer algo muito amaneirado e expressionista como a mini-série Mildred Pierce, que fiz com o Todd, e passar daí para alguém tão naturalista como o Ulrich permite-me fazer algo de que gosto muito: navegar entre mundos a criar imagens."

Curiosamente, Mildred Pierce foi rodado em super-16mm, mas, num momento em que os formatos digitais se estão a tornar o "padrão", Lachman não é fetichista da película. "Cresci com a película, e diria que o meu olhar é em película; compreendo o digital através da película. Mas já fiz uma série de documentários em digital, e uma série de retratos documentais com um telemóvel. Não me preocupo grandemente com o meio em que trabalho. Procuro definir os parâmetros e as limitações dos formatos com que estou a trabalhar, mas o importante é como se conta a história com a imagem. Trata-se apenas de continuar a contar histórias."

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