Bobby Cristo

Através da personagem de Bobby Sands, militante do IRA, "Fome" transforma-se num filme sobre o sofrimento físico.

Estivéssemos noutra década (anos 1920 ou 1930) e seria mais claro (ou mais notado) o traço de união entre o trabalho vídeo de Steve McQueen e o cinema. Esses foram tempos de feliz "incesto" na relação entre a "arte" e o "cinema" (Duchamp, Léger, Man Ray...) e a distinção entre o que era para ver "na galeria" e o que era para ver "na sala de cinema" não tinha o poder, "categórico", de que mais tarde se revestiu.

Chame-se o que se quiser à obra vídeo de McQueen, ela não é suficientemente estanque para excluir um relacionamento com o cinema: "Drumroll" é uma experiência vertoviana, "Deadpan" uma espécie de remake de Buster Keaton. Por essa razão ou por outra, a primeira coisa que nos apetece destacar na primeira longa de McQueen "para cinema" é uma espécie de modéstia: o artista faz-se cineasta, quase convencional e classicamente, não para "destruir o cinema" (como Greenaway) nem para o pejar de um "visionarismo" estéril e irrelevante (como Matthew Barney), mas apenas para... fazer um filme. Quer dizer: não para impor um "gesto", mas para trabalhar, aceitando-a, dentro de uma estrutura a que se podia chamar "tradicional" (dramaturgia em três actos: mais tradicional não há). Que nada nessa aceitação implica a exclusão de uma visão pessoal ("artística") e de um trabalho formal rigoroso e individual, "ça va de soi" há cem anos.

Dirão, e temos lido dito (pelo próprio McQueen inclusive), que "Fome" é um filme sobre o IRA e sobre os seus mártires das décadas de 70/80. Quando o filme escolhe um protagonista (o que só acontece quando se chega ao "terceiro acto") escolhe Bobby Sands, o mais emblemático rosto desse martírio.

"Fome" descreve a luta dos encarcerados militantes do IRA pelo reconhecimento do estatuto de prisioneiros políticos, sempre oficialmente negado pelo governo britânico - todo um contexto que McQueen dá em elipses simples e brilhantes, com a reprodução (apenas na banda sonora) de trechos de alocuções de época de Margaret Thatcher. Antes do seu momento mais célebre, a greve da fome de que Sands foi o principal protagonista, os outros protestos: a recusa de envergar o uniforme prisional reservado aos criminosos comuns (os presos ficavam nus nas celas, só com umas toalhas para se enrolarem), e o "dirty protest", a recusa de toda a higiene. Este protesto seria difícil de filmar, como é difícil filmar a "porcaria".

McQueen resolve-o bem, como que modulando o seu grafismo: a porcaria, os dejectos e a comida apodrecida, transformam-se em "matéria", em autêntico material de pintura que os presos usam para transformar as celas em verdadeiras galerias de "arte povera". Toda esta primeira parte encena a vida prisional como uma ritualização, dos procedimentos legais à obstinação dos presos na sua disciplina de protesto. A razão política cedo se torna uma abstracção: trata-se de mostrar dois organismos colectivos (os presos e os guardas-prisionais) em confronto, um mecanismo de repressão e outro de resistência à opressão. Duas entidades quase "tribais", como o parece querer sublinhar a sequência (outro "ritual", onde as batidas ritmadas dos cassetêtes nos escudos dos guardas se assemelham a tambores cerimoniais) do espancamento dos presos - espancamento "revanchista" ou espancamento "altruísta" (quererão os guardas quisessem fazer quebrar a obstinação dos presos para bem destes?), a maneira como McQueen procura a expressão de uma humanidade (os olhos) em todos, guardas ou presos, deixa esta ambiguidade (assim como justifica o olhar piedoso, mesmo na brutalidade, para com o guarda por quem o filme principia e se mantém durante algum tempo).

Destes mecanismos "impessoais" emerge a personagem de Bobby Sands, e é através dele que "Fome" se vai transformar em filme sobre o sofrimento físico e psicológico plenamente aceite e, mais do que isso, auto-imposto. Tínhamos visto já (uma formidável cena de missa, como o mais estóico dos padres) uma pequena "convenção de Cristos": todos aqueles presos de barba e cabelo compridos, com toalhinhas brancas enroladas à cintura.

Quase um gag. Com Bobby Sands (Michael Fassbender) deixa de ser gag, e todo a parte final, que acompanha (pudica e elipticamente) a greve de fome, é uma "paixão de Cristo", a paixão de um outro Cristo (ou Cristo evocado através de outro indivíduo) - mesmo o extremo emagrecimento que Fassbender viveu para o papel faz um sentido especial (depois da "arte povera" do princípio, agora a "body art"...), tanto mais que o olhar de McQueen consegue permanecer doce sem fugir à crueza desse corpo (e a morte assume assume a figura de um bando de pássaros negros esvoaçantes, que vem assombrar a imagem, sobrepondo-se-lhe).

Como introdução a este último andamento víramos um dos mais espantosos planos que pudemos ver este ano: o longuíssimo plano fixo da conversa entre Sands e o Padre. Sands explica-lhe o que vai fazer, o Padre tenta demovê-lo, numa conversa em que os argumentos políticos se misturam com os religiosos. É o momento central do filme, pela grandeza do plano (o John Ford possível? É o plano por onde entra a nostalgia de uma Irlanda quase mítica, e é um plano que muito faz lembrar o mais célebre dos "planos fixos de conversa" de Ford, o de "Two Rode Together"), mas também por ser o momento em que a personagem de Sands é aberta, esventrada, e a sua obstinação de robot programado para resistir transformada numa pequena explosão de humanidade.

É partir daí que aquela personagem passa realmente a ser Bobby Sands, ao mesmo tempo, e pelo mesmo motivo, em que deixa de ser o Bobby Sands da História e passa a ser o Bobby Sands de Steve McQueen.

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