Vida nova

O criador de "Perdidos" pega no bafiento "franchise" de Gene Roddenberry e insufla-lhe vida nova num dos mais assombrosos "blockbusters" recentes.

Lamentamos muito, mas impõe-se a hipérbole: se só quiser ir ver um "blockbuster" hollywoodiano em 2009, então corra a ver "Star Trek". Mesmo que nunca tenha gostado da série televisiva de Gene Roddenberry ou que a ficção científica não lhe diga muito - isso não tem importância nenhuma para o caso. Porque o que J. J. Abrams fez a partir do "franchise" futurista que tem sido ressuscitado a espaços respira um aroma de possibilidades, de maravilhamento, de entretenimento popular como uma Hollywood demasiado apoiada em fórmulas e projecções-teste e marketing e produtos formatados e derivados raramente tem conseguido. Mais grave é que Abrams fá-lo por dentro do sistema: quer-se mais formatado que um "Star Trek" que tinha como lema norteador imposto pelo estúdio relançar a saga espacial da nave Enterprise em função do público jovem que é hoje o pão para a boca dos estúdios, mas sem trair o "livro de estilo" de um universo anteriormente declinado em dez filmes e cinco séries de televisão?

É por não se esperar grande cinema desse caderno de encargos puramente utilitário que "Star Trek" é uma surpresa tão grande. Porque, sim, é grande cinema popular - com um extraordinário lado lúdico de "serial" clássico que vê os nossos heróis saltarem de cenário em cenário, de "cliffhanger" em "cliffhanger", sem que nunca se perca ritmo (sacrilégio: "Os Salteadores da Arca Perdida" veio-nos à cabeça...), mas sem que isso implique perder de vista a construção de personagens sólidas e plausíveis. Repare-se como, nos primeiros vinte minutos, Abrams e os argumentistas Roberto Orci e Alex Kurtzman delineiam com uma mão-cheia de traços simples e sem perderem tempo com mais do que o essencial, quatro personagens centrais - e, ao fazê-lo, introduzem com inteligência aquele que é o tema que percorre todo o filme: a filiação.

Mais do que ser (que também é) uma história sobre pais e filhos, tema central à narrativa hollywoodiana, este "Star Trek" levanta questões de transmissão de conhecimento e de valores, de heranças aceites com maior ou menor relutância, do conflito entre o respeito pela tradição e a necessidade de injectar novidade para a poder levar para a frente. Ou seja: Abrams, Orci e Kurtzman transformaram o seu próprio dilema ao receberem as rédeas do "franchise" no motor que embala e desenvolve a história desta "prequela" que imagina a primeira missão da equipa "clássica" da Enterprise (o capitão Kirk, o vulcano Spock, o médico "Bones" McCoy...), aqui recém-saída da Academia da Frota Estelar. Como é que se faz novo do velho? Fazer uma prequela, por si só, não chegava (veja-se o resultado descoroçoante de "Wolverine"), era preciso infundir-lhe uma qualquer "alma" indefinível e intangível que mantivesse intacto o espírito original.

Este, então, não é o "Star Trek" cerebral e reflexivo que reconhecemos da TV - ou antes, também é, mas transposto para um corpo de "space opera" pura e dura que nem hesita em reciclar elementos derivativos e utilizados noutros filmes para construir uma "síntese" do que deve ser uma "space opera". E esse é o truque seguinte de Abrams, que usa esse processo de reciclagem e derivação para evocar/invocar a memória do grande entretenimento clássico hollywoodiano, o prazer do reconhecimento de fórmulas a que se dá a volta de maneira virtuosa e de sentirmos que estamos em casa, como um velho sofá que acabou de voltar a ser estofado. Não se trata apenas de recauchutar o sofá: trata-se de o restaurar de um modo que lhe devolva a sua função primária mas sem perder a identidade, o conforto, na reconstrução. E que Abrams tenha sido capaz de o fazer como se fosse a coisa mais fácil do mundo, respondendo ao "caderno de encargos" sem ter o mínimo problema de descartar o que já não funciona, é por si só notável. "Star Trek" nunca perde de vista que a sua função primária é ser uma montanha russa, uma máquina de gerar emoções que integra a herança da série numa viagem alucinante que nunca toma o espectador por parvo nem parte do pressuposto que ele conhece a fundo os 40 anos de iconografia Trek. Missão mais do que cumprida - estas duas horas passam num instante e Abrams até consegue deixar-nos a roer as unhas quanto a um final que já todos sabemos que vai ter de ser feliz.

Não gosta de ficção científica? Não faz mal. Não gosta de "Star Trek"? Também não faz mal. Este "Star Trek" foi pensado para si que não gosta nem de uma coisa nem de outra - e é (sem meias medidas) uma obra-prima.

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