A estepe em loucura

A estepe rebenta de vida por todos os lados, eis o pequeno milagre da primeira ficção de Sergey Dvortsevoy

Sergey Dvortsevoy, cazaque (ou russo de origem cazaque, é difícil esclarecer isto) nascido em 1962, é autor de alguns notáveis documentários, como "Highway", alguns deles vistos em Portugal em festivais ou seminários (como o Doc''s Kingdom em Serpa, onde Dvortsevoy já esteve presente em pessoa). "Tulpan" é a sua primeira incursão na ficção. E se de ficção - delirante, rebuscada, movimentada - se trata inequivocamente, diríamos que um dos seus primeiros traços distintivos é a permanência de um olhar de raiz documental, a fazer vibrar, de modo muito especial, a paisagem e a natureza, as figuras (os homens e os animais) e as situações, ou, em resumo, a articular a "fantasia" e o "real" (ou a "fantasia" dentro do "real") sem nunca trair o propósito de retratar um contexto cultural específico (porque evidentemente, e culturalmente falando, o "real" é sempre também a sua própria "fantasia").


Mas de que se trata, concretamente? Estamos na Estepe da Fome, área desolada do Cazaquistão, povoada por grupos de nómadas que se dedicam, sobretudo, à pastorícia de bovinos e camelos. Há um rapaz, Asa, ex-marinheiro na armada russa, que quer provar ser digno de conduzir o seu próprio rebanho; mas para o fazer, qual rito de entrada na idade adulta, precisa de demonstrar a sua "responsabilidade", algo que naquelas paragens é sinónimo de casamento. Problema: na Estepe da Fome a comida não é a única coisa que rareia, também são muito poucas as mulheres solteiras. Há uma, mais precisamente, que se chama Tulpan e é o objectivo (melhor seria dizer o alvo) do nosso homem. Problema adicional: Tulpan não vê em Asa o seu ideal de marido, pelo problema menor mas inultrapassável de as orelhas dele serem, acha ela, demasiado grandes. E assim se instala o impasse, o impasse que no fundo é a grande história de "Tulpan".

"Comédia do casamento", ou do "não-casamento", em paisagem desértica, o filme de Dvortsevoy insiste em contrariar, justamente, o próprio deserto. A estepe rebenta de vida por todos os lados (há cenas fabulosas com animais, incluindo o parto de um bezerro que é uma extraordinária explosão de realidade), e de movimento em todas as direcções, autêntica "auto-estrada" (ou outra "Highway"). O próprio, e suposto, "isolamento", é constantemente contrariado: mesmo a Estepe da Fome é suficientemente porosa para estar polvilhada de múltiplos sinais e manifestações da "cultura global" (televisão, imprensa, o "mito" de Carlos e Diana de Gales - por causa das orelhas do príncipe), ainda que esses sinais e manifestações sejam rapidamente pervertidos, ou, no mínimo, incorporados de uma forma que contém já uma espécie de comentário irrisório - há, por exemplo, uma carripana que circula pela estepe com uma instalação sonora a debitar música "disco" por entre areias e camelos ("Tulpan" não é um filme sobre o efeito do "global" sobre o "local"; mas, ao contrário, um filme sobre o poder que o "local" ainda exerce sobre o "global").

E toda esta diversidade, toda esta "impureza", unida, filtrada, decantada, por um gesto que, peremptoriamente, associa tudo e todos num sentimento de profunda comunhão, onde não há "natureza" sem "cultura" e vice-versa, que faz de "Tulpan" uma "fantastic voyage" ao interior de um organismo vivo. Eis, resumidamente, o pequeno milagre da primeira ficção de Sergey Dvortsevoy.

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