A colecção Berardo e a condição social

Os artistas e o mundo em mudança

Partindo de uma frase do Manifesto Comunista - "Tudo o que era sólido e estável dissolve-se no ar"-, Miguel Amado concretiza nesta exposição uma montagem de obras seleccionadas da colecção Berardo, a que se juntam outras vindas de instituições e galerias portuguesas e estrangeiras, sob o tema da consciência social. A frase, que alude à evolução dialéctica da própria sociedade, permite agrupar um conjunto diversificado de artistas e obras que enchem quase por completo o piso inferior do museu. Da Pop ao Minimalismo, do Neorrealismo aos muralistas mexicanos ou à arte dos tempos mais recentes, da fotografia alemã da década de 80 à "Lisboa Cidade Triste e Alegre" de Costa Martins e Victor Palla, trata-se aqui, em primeiro lugar, de um reencontro com peças que nos habituámos a encontrar em todas as apresentações desta colecção, mesmo quando o conceito da exposição nos leva a considerá-las sob nova perspectiva; e, em segundo lugar, da descoberta de autores e obras que as completam, enriquecem, questionam - quer se trate de nomes consagrados (Cavalcanti, Portinari), quer de artistas mais jovens que o talento do comissário conseguiu descobrir e agregar ao núcleo inicial.E é obviamente pela via das gerações mais recentes, que juntam a qualidade à surpresa da descoberta, que encontramos as obras mais marcantes da exposição. Cite-se o painel de ilustrações da revista Combate, por exemplo, ou a peça de Carla Cruz, mas sobretudo a extraordinária sala dedicada à peça de Rigo: uma instalação dominada por um submarino nuclear feito em taipa por uma comunidade índia brasileira, que convive com um arsenal de mísseis em cestaria e uma tripulação sumariamente talhada em madeira. Poderíamos também mencionar o colectivo português Sparring Partners, que se apropria de técnicas e formas historicamente anteriores para as actualizar com conceitos actuais - por exemplo, na equiparação feita entre a imagem mediática de Baader e a de Eva Hesse -, correctamente disposto quase ao lado do célebre "Pioneiro" de Rodchenko. E também, é importante acentuá-lo, a presença sistemática de nomes e obras das periferias dos centros artísticos: Colômbia, Bolívia, Polónia, entre outros. Dos portugueses, destacam-se os trabalhos de João Louro, de Ângela Ferreira e de Gonçalo Pena.

À primeira vista, a exposição parece contestar a premissa pós-moderna de que as vanguardas se evaporaram definitivamente. Ao colocar uma frase de Marx e Engels em exerga, ao destacar o primado da dinâmica como condição da própria existência social, as obras que aqui encontramos tendem a cumprir uma promessa que parecia adormecida desde os tempos da modernidade: a de traduzir, sob formas sempre renovadas, a inquietação do artista perante as condições da sociedade em que vive. Ora, mesmo se essas formas pelo menos não se evaporaram ainda, o que todos estes artistas demonstram é que a consciência do tempo presente e das condições em que nele vivemos continua a ser um facto na arte dos dias de hoje. Há, sobretudo nos artistas mais novos, uma inquietação muito nítida sobre o papel do artista na sociedade. Como o comissário bem o diz, se este tipo de práticas nunca desapareceu por completo, arriscou-se a cair no esquecimento por culpa de leituras mais sectárias da historiografia da arte mais recente. Esperemos que esta exposição seja o começo de um olhar sobre a produção artística que se deseja cada vez mais e mais atento e objectivo.

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