Da vida e da morte

Saramago, aqui, não é o ícone, é o homem

José Saramago tornou-se um ícone cultural, sobretudo depois da atribuição do Nobel, mas já antes disso entrara no cânone ocidental (Harold Bloom dixit) por via de uma obra polémica com pessoais marcas de estilo, embora dispersa em termos de abrangência temática, e de um posicionamento político interveniente: comunista assumido, ateu militante, sacrílego contestatário da herança do cristianismo, director do "Diário de Notícias" nos tempos quentes do PREC, defensor de uma estranha União Ibérica, na sequência do seu "exílio" na ilha de Lanzarote, dizendo cobras e lagartos da pátria que o "rejeitara", embora sempre mantendo uma complexa relação de amor-ódio com Portugal. Biografar uma figura desta dimensão implica riscos incalculáveis, de tal modo o seu ego desmesurado suplanta a dimensão física e literária da "personagem". Envolvê-lo numa idealizada história de amor acresce o tamanho da façanha de construir uma ficção documental, feita de fragmentos e gestos acumulados ao longo de centenas de horas de filmagem, durante anos.

O ponto de partida é interessante e passa pela assunção de que todo o material narrativo possui uma componente autobiográfica, construindo assim um arremedo de memórias provocadas, algo que o próprio Saramago cultivou, sobretudo nos narcísicos e diletantes "Cadernos de Lanzarote": a montagem possível dos fragmentos estrutura-se de modo cronológico com datas apostas a cada um dos elementos, cobrindo três anos de vida e obra, de 2006 a 2008, os anos do endeusamento máximo (a inauguração da biblioteca de Lanzarote, a grande exposição iconográfica, as repetitivas entrevistas pelo mundo inteiro, a criação da Fundação José Saramago), mas também da doença e do contacto com a morte, pudicamente tratados com extremo cuidado pelo "biógrafo".

O projecto parte, porém, de outras coordenadas: há um Saramago antes de Pilar e outro depois de Pilar e esta imiscui-se na narrativa com um protagonismo desafiante que atinge o ponto culminante na entrevista ao "Diário de Notícias", construindo uma figuração central que contrasta com o retórico apagamento perante o mestre.

Por tudo isto, a história de amor cifra-se no confronto entre dois egos de idêntica força e o documentário dissolve-se numa ficção articulada com os dados factuais e jogada contra uma dimensão que é aparentemente a predominante, a hagiográfica: o louvor ao "homem que mais fez pela língua portuguesa" aparece, em simultâneo, no excesso de uma vaidade narcisista e na extrema fragilidade que a doença e a ameaça da morte arrastam consigo. Se "José e Pilar" constitui um monumento à glória de um escritor, assume-se também como uma contagem decrescente: Saramago insiste na falta de tempo, na ignorância do que existe para além da desaparição física. E se o objecto do olhar é complexo e contraditório, a montagem das imagens aumenta essa complexidade, porque parece desnudar o que "elogia".

Pautado por dedicatórias (as muitas a Pilar "que tardou tanto a chegar"), ignorando embora o lado mais negro da personalidade do escritor, a alteração das dedicatórias que fez a quem chegou antes à sua vida, numa espécie de cancelamento de um passado que deveria respeitar, até em nome do "grande amor", o filme aceita as regras do jogo: José é um homem mais do que um ícone.

Na montagem final reside a escolha da narrativa que se quer mostrar: seleccionar a referência a "Caim" significa um olhar retrospectivo que dá conta do que aconteceu depois do tempo representado; insistir na omnipresença da morte significa, consciente ou inconscientemente, a importância posterior da sua passagem para o tal outro lado que Saramago não reconhece. Há um lado telúrico, a subida à montanha, a paisagem agreste de Lanzarote que o olhar do cineasta cruza com a imediatez de um quotidiano, tornado comezinho pela repetição dos gestos.

E chegamos a um dos problemas fulcrais. "José e Pilar" é um filme sobre o tempo: os três anos que reconstitui, a duração das peripécias seleccionadas, o muito tempo que fica de fora na montagem, o tempo que falta para completar uma obra começada verdadeiramente aos 60 anos. Poderia ser um "filme-fleuve" de 50 horas, poderia optar por mais cortes, mas a grandeza do romance documental retrata-se nessa hesitação, nessa noção de que vida e morte não cabem no espaço exíguo de uma projecção. Por isso, o essencial passa menos pelo conteúdo (Saramago é sobretudo um pré-texto) do que pelas formas. "José e Pilar" é um documentário, mas também um documentário para acabar com a ilusão do documental puro. Um fim de ciclo. Depois disto, ainda será possível a Miguel Gonçalves Mendes, que já nos dera o excelente "Autografia" (2004), continuar a fazer documentários? A enormidade do projecto poderá ter-se esgotado na sua feitura.

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