Psicopata espanhol

O “novo Almodóvar” não é o “Almodóvar do costume”; antes um exercício formalista ao qual falta a personalidade que nos habituámos a esperar do cineasta. E isso é bom e mau

É “o novo Almodóvar” como se fala hoje do “novo Spielberg” ou do “novo Moretti”, ou se falou em tempos do “novo Chabrol” ou do “novo Truffaut” - e não há muitos cineastas europeus contemporâneos de quem se possa dizer que têm uma marca reconhecida pelo grande público. O problema é que a “marca Almodóvar” já implica expectativas de um determinado tipo de filme, cristalizado por um lado nos delírios garridos da fase “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”.


“Ata-me” e por outro na improvável sequência de obras-primas “Tudo Sobre a Minha Mãe”/“Fala com Ela”/“Má Educação”. Ora, o “cineasta Almodóvar” está claramente a querer fugir do “colete de forças” em que se deixou encerrar: é isso que explica “A Pele Onde Eu Vivo”, obra malsã e formalista que faz a “ponte” entre o seu cinema mais subversivo dos anos 1980 e o requinte classicista que o tornou num superior autor de melodramas modernos.

Este é um filme simultaneamente notável e falhado, exercício de estilo grandiosamente vão que sintetiza toda a carreira de Almodóvar; não se sente o “piloto automático” dos anteriores “Voltar” e “Abraços Desfeitos”, antes um desafio que o cineasta colocou a si próprio - levar aos limites do desconfortável as convenções do cinema de género sem nunca trair o estilo sedutor e elegante que tem vindo a aperfeiçoar. Trata-se, no fundo, de uma história gótica, policial paredes-meias com o filme de terror, sobre a relação mista de ódio e desejo entre uma misteriosa cativa e o cirurgião recluso que a mantém prisioneira, que viremos a descobrir ser o resultado de uma vingança Frankensteiniana.

A presença de um inquietante Antonio Banderas no papel principal remete inevitavelmente para os seus primeiros filmes e sobretudo para “Matador”, obra que, no seu jogo de pulsões entre a morte e o desejo, entre o crime e o amor, antecipava “A Pele Onde Eu Vivo” de 25 anos. E, tal como então, Almodóvar não está aqui grandemente preocupado se o público o seguirá ou não - apesar de estar claramente inscrito na sua obra e nas suas temáticas habituais, este não é um filme “de carreira”, antes uma espécie de “linha na areia” para lá da qual nem todos o seguirão. Isso é bom: somado ao requinte quase sem esforço com que o realizador tece uma elegantíssima teia de sedução cinéfila, evocando Hitchcock e Cronenberg a par das belas-artes (de Louise Bourgeois a Gustave Courbet) e brincando habilmente com as referências aos seus próprios filmes, sugere-nos aqui um cineasta livre e suficientemente confiante para experimentar a seu bel prazer.

Mas esse formalismo sedutor acaba por também por criar um esquizofrénico efeito de ostentação que, paradoxalmente, anula toda e qualquer emoção. O cinema de Almodóvar ganhou-se sempre no histrionismo hispânico que injectava uma personalidade nas convenções de género; aqui, essa identidade (que está no próprio centro da trama) dilui-se e afoga-se no formalismo fascinado do corpo mutante, como se o dr. Ledgard de Banderas fosse um alter ego de Almodóvar, tornando “A Pele Onde Eu Vivo” num filme admiravelmente gélido, glacial, mordido por um vampiro que lhe tivesse sugado todo o sangue. O que daqui resulta é inevitavelmente espantoso: um filme-súmula onde Almodóvar colocou tudo o que o fascina - à excepção da alma que o tornaria de objecto-”puzzle” em obra-prima para juntar aos seus clássicos. O “novo Almodóvar” não é o “Almodóvar do costume”, e ainda bem, mas se há grande cinema em “A Pele Onde Eu Vivo”, isso por uma vez não chega para fazer um grande filme.

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