O socialismo individual

Vale como reflexão sobre esta Europa contemporânea

Robert Guédiguian volta a Marselha e à antigamente designada “classe operária”. É o ambiente típico dos seus filmes, mesmo que dos três filmes dele estreados em Portugal só um corresponda a este perfil, Marius et Jeannette; os outros dois, Um Passeio pela História e O Exército do Crime, andavam por outras paragens (Mitterrand e a Resistência), mas são excepções. O título é um “trompe l''oeil”, portanto: em As Neves do Kilimanjaro não há Kilimanjaro nem neves, apenas uma cançoneta francesa dos anos 60 inspirada pelas “neiges du Kilimandjaro”. Referência nostálgica, e imbricada na vida pessoal do casal protagonista (Jean-Pierre Darroussin e Ariane Ascaride), relacionada com a espécie de nostalgia política, vivida quase em complexo de culpa, que alimenta a motivação das personagens.


Um crítico francês chamou-lhe a “nostalgia do ideal perdido”: depois de décadas de activismo socialista e sindicalista que deu frutos, a personagem de Darroussin, trabalhador do porto de Marselha obrigado a aceitar uma reforma antecipada, não tem a miséria à espera, antes uma vida relativamente confortável, uma espécie de “upgrade” do operariado para a classe média. Os mais novos, igualmente despedidos do porto mas condenados ao desemprego, não têm a mesma sorte, e as incidências da intriga - um assalto - despertarão em Darroussin um espírito de solidariedade tingido por algum sentido de culpabilidade. Na Europa da precariedade e da “flexibilidade”, porá em prática, perante a renitência da família e dos amigos, uma espécie de socialismo em nome individual: perturbado por ter o suficiente para ser alvo da cobiça assaltante de outros menos privilegiados, interessa-se e condói-se, activamente, por quem o roubou.

As Neves do Kilimanjaro é assim uma espécie de fábula idealista, pintada com as cores reais de uma comunidade marselhesa. Este lado descritivo, vivido, é o mais forte e o mais interessante do filme - que depois de uma bela sequência inicial (o despedimento colectivo, filmado com um “suspense” solene) se deixa prender numa narração convencional, nunca muito entusiasmante, parcialmente redimida pela justeza das presenças dos actores e pelo modo como encarnam (sobretudo Darroussin e Ascaride, dois “regulares” de Guédiguian) uma nobreza de carácter que nunca se torna desumanamente “exemplar”, e em que se pode, portanto, acreditar. Vale por isso, e vale, sintomaticamente, como reflexão sobre esta Europa contemporânea, em sanha contra os “direitos adquiridos” e ladainhas congéneres. Mas Guédiguian já fez melhor, mais agudo e mais interpelador.

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