Woody Allen filma no chuveiro

Há os que cantam despreocupadamente no chuveiro mesmo não tendo voz. O cinema de Woody Allen está nessa fase

A abertura é "à la Querido Diário", de Nanni Moretti, embora nada no cinema de Woody Allen tenha habitualmente a ver com essa durée, com esse abandono sensual.


Desagua depois - o polícia sinaleiro que nos diz que Roma é uma cidade de muitas histórias, antes do filme começar a contá-las - numa daquelas disponibilidades para o fragmento, para o episódico, que fez a fama da comédia italiana dos anos 60 e 70. Embora o cinema de Woody também nunca tivesse revelado disposição para se deixar invadir pela energia proletária que naquele cinema era algo de carnívoro - talvez tenha mostrado alguma(s) dessa(s) garra(s) em O Agente da Broadway, de 1984, entre italoamericanos e gangsters...

O problema é que quando mais tarde em Para Roma, com Amor surge o casal interpretado por Woody Allen e Judy Davis, americanos a bordo no voo para Itália, a sensação é a mesma: que Woody está de fora a imitar habilidades alheias. Quer dizer: Woody Allen aparece aqui como imitador do seu cinema - como amador. É perturbante a sensação de “reconstituição” neste dueto inicial entre Allen e Davis, por exemplo: como se os dois representassem algo que já pertence ao passado, que está morto, encerrado. É aqui na realidade, e só com duas ou três excepções, que o cinema de Allen se instalou no seu percurso por cidades europeias, Londres, Paris, Barcelona: tocando superficialmente no que lhe é exterior, sem vontade ou preocupação de entender ou conhecer, apenas como alibi para “cantar por cima” do que lhe é familiar ou próprio - e por isso vem para fora como reflexo cansado, um todo deslassado pela balda formal que tem dado ao mundo os filmes mais feios de Allen. No conjunto de personagens e episódios que não constroem estrutura alguma em Para Roma, com Amor, Penelope Cruz faz uma prostituta, figura cara a Allen que no passado permitiu uma gloriosa prestação a Mira Sorvino (Poderosa Afrodite, 1995) - mas Cruz foi mais Sophia Loren no Volver de Almodóvar; Roberto Benigni traz algo do seu apocalipse, e do apocalipse felliniano (La voce della luna, 1990), mas como memória distante, como recitar de cor e apressadamente; há um jovem casal italiano em lua de mel que é uma visão exótica do que foram arquétipos do neo-realismo; ou há Allen como encenador de ópera que se entusiasma com um cantor que só afina no chuveiro. É este o estado deste cinema: canta no chuveiro, cá fora (já) não tem voz. Como faz em público o que só em privado se faz despreocupadamente, gabe-se-lhe a lata - ou a inconsciência de si.

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