Atribulações de uma francesa na Coreia

Uma observação, ora cúmplice ora um pouco cruel, da natureza humana, na sua relação titubeante com as circunstâncias.

Ora vamos lá ver se é à segunda tentativa que Hong Sang-Soo pega em Portugal. A primeira foi há três anos, quando estreou no circuito comercial português Noite e Dia, oitava longa-metragem deste prolífico sul-coreano nascido em 1960. O filme era maravilhoso, pequena obra-prima de humor, inteligência e precisão, mas não pegou, a julgar pelos factos: as quatro longas-metragens que Hong, rápido além de prolífico, rodou depois dele ficaram por estrear (algumas puderam ser vistas na Cinemateca), e só agora com Noutro País, quinto filme depois de Noite e Dia, é que um distribuidor volta a tentar fixar o nome de Hong junto dos espectadores portugueses. Esperemos que o consiga, Hong Sang-Soo é das melhores coisas do cinema contemporâneo, facilmente o poríamos numa lista dos dez realizadores em actividade que mais vale a pena seguir.


Hong, que já tem um sucessor para Noutro País (apresentou Nobody''s Daugther Haewon no último Festival de Berlim), contou neste filme com uma vedeta internacional, Isabelle Huppert. É a primeira vez que Hong filma com uma figura deste gabarito, ele que sempre preferiu “subtrair” em vez de “somar”, e trabalhar com actores “pagos pela tabela mínima” para “que estejam no filme por paixão e não pelo ordenado”, conforme explicou numa entrevista recente. Tínhamos algum receio do efeito que uma actriz tão reconhecível e tão “impositiva” como Huppert podia gerar no delicado equilíbrio de cinema de Hong. O filme não justifica o alarme, porque integra perfeitamente a “alteridade” de Huppert e porque ela própria aparece com uma leveza, uma desenvoltura e uma graça que anos de papéis “radicais” (tipo Haneke e afins) pareciam ter matado. Além de que gera, por coincidência, um curioso espelho para esse outro filme estreado em Portugal: em Noite e Dia tínhamos as aventuras de um grupo de coreanos em Paris, em Noutro País temos as aventuras de uma francesa na Coreia.

Isto é que já não é coincidência nenhuma, porque se trata do princípio ficcional predilecto de Hong: os seus filmes têm tendência a começar no momento em que alguém chega a algum lugar onde nunca tinha estado. Neste caso, esse lugar é uma terreola algures na costa coreana, sítio um pouco bisonho e aparentemente sem nada de especial, onde um “pequeno farol” (que o filme trata como leit-motiv) parece ser o máximo da atracção - de resto, um tema recorrente de Hong é esta banal indiferença das paisagens urbanas ou semi-urbanas da Coreia. Mas essa terreola, dizíamos, é aonde chega Huppert - não uma, mas três vezes. Ou, na verdade, nenhuma: a singularidade narrativa de Noutro País é que tudo o que nele se passa é ficção gerada pela ficção, três episódios que são como três hipóteses de filme, que se alinham (podiam estar separados por um “ou então...” como no Fumar/Não Fumar de Resnais) para formar um só filme. É ficção criada dentro da ficção, literalmente: o que põe tudo em marcha é uma miúda, estudante de cinema, que para matar o tédio se põe a escrever um argumento. O filme ilustra a escrita da miúda, e se este pormenor é importante por realçar algumas características do processo criativo, com abundantes rimas, repetições e jogos de espelhos entre os três episódios, que têm todos uma estrutura semelhante (dalgum modo reproduzindo também uma característica de Hong, um daqueles cineastas frequentemente acusados de se “repetirem” e de fazerem sempre “o mesmo filme”, que aqui se “repete” e faz três vezes “o mesmo filme” dentro do “mesmo filme”...), nunca se torna um truque nem o centro das atenções. Lembramo-nos da artimanha ficcional apenas na justa medida, e no resto do tempo mergulhamos no exercício da ficção propriamente dita, e da melhor das maneiras: acreditando piamente nela e nas personagens, mesmo se é o filme quem primeiro nos diz que tudo é, justamente, ficção, imaginação (fala-se muito de Rohmer a propósito de Hong, e aqui não seria descabido, mas é um caso em que, de facto, o melhor Resnais seria o ponto de referência “estrutural” mais justo”).

E passa-se o quê, entre tudo o que na verdade se passa apenas na cabeça escritora de uma adolescente coreana? Acontecimentos tipicamente “honguianos”: a chegada de uma forasteira (que pode ser uma cineasta, como tantas personagens de Hong, no primeiro episódio; uma mulher casada que vem ao encontro do amante - cineasta... - no segundo; uma recém-divorciada que se vem recompor à beira-mar no terceiro) e os seus efeitos sobre um pequeno círculo de relações, a estranheza a multiplicar as inseguranças de todas as personagens, as hesitações, os quiproquós, as conversas por meias-palavras, e tudo o que fica lost in translation (Hong tira óptimo partido das dificuldades linguísticas, e são muito divertidas as cenas de conversa com três ou quatro intervenientes onde há pelo menos um que não está a perceber patavina do que os outros dizem). Todas as histórias e história nenhuma, que é sempre a mesma história: uma observação, ora cúmplice ora um pouco cruel, da natureza humana, na sua relação titubeante com as circunstâncias. Matéria que pode ser dramática, mas que Hong usa como elemento essencial para comédia fina, divertidíssima mesmo quando é grave (o “arrefecimento súbito”, no sentido meteorológico do termo, é um procedimento caro ao cineasta), e que dá imenso prazer ver. Esperemos que seja desta que Hong se fixa em Portugal. Merece ele e, mais importante ainda, merecemos nós.

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