Fubar

Um Terence Davies a régua e esquadro - e infelizmente pomposo.

Terence Davies é um caso singular no cinema britânico das últimas décadas. Quanto mais não seja por ter vincado uma identidade de “autor” trabalhando sempre sobre modelos que, não negando um vínculo com a dominante corrente do “realismo britânico” (de onde vêm, e sempre estiveram, Ken Loach ou Mike Leigh), dela se afastam decisivamente. É por norma um cinema do artifício, do estúdio, com forte influência do musical (como espectáculo, teatral ou cinematográfico) e da música (como expressão popular, folk, no melhor, e quase etnográfico, sentido do termo), temperado por umas quantas persistências de raiz autobiográfica, como a cidade de Liverpool (terra natal de Davies) e os anos 50 da Grã-Bretanha (época em que Davies, que nasceu em 1945, cresceu). Não espanta que os seus melhores filmes sejam aqueles, feitos “em casa”, em que tudo isto se junta harmoniosamente: Distant Voices, Still Lives, que em finais dos anos 80 se aguentou semanas a fio no Quarteto, ou The Long Day Closes. Nem que os piores, ainda que eventualmente mais famosos (o mercado é o mercado), sejam os que foi fazer à América, The Neon Bible ou House of Mirth, que desfazendo o vínculo fundamental do cinema de Davies deixavam à vista o que ele tem de pior, a saber, uma queda para um academismo muito rígido (e muito “britânico”) e muito bem ornamentado.


Toda a singularidade de Davies, inclusive o que nela há de mais indigesto, está expressa em O Profundo Mar Azul. O filme adapta uma peça de Terence Rattigan, datada de 1952, e é uma espécie de end of the affair, até certo ponto bastante comparável com a conhecida história de Graham Greene que não há muitos anos Neil Jordan adaptou - a história do fim de um amor ilícito (quer dizer, adúltero) entre a mulher de um juiz (Rachel Weisz) e um antigo aviador da RAF (Tom Hiddleston), contada parcialmente num flashback lançado pela tentativa de suicídio da personagem de Weisz, que é por onde o filme começa. Weisz e Hiddleston são muito bons, e até muito comoventes, e muito bons - muito “britânicos”, agora no bom sentido - são todos os actores secundários. A peça é perfeitamente integrada na sua época, a Inglaterra (Londres) do pós-guerra, reconstituída em estúdio: em estrutura circular, o filme abre e fecha com um movimento de câmara que sai (e no fim, volta) a uma casa em ruínas, mais do que provável ferida ainda não cicatrizada dos anos do Blitz. Mas é também a psicologia da época que está em causa, através da personagem do ex-aviador: FUBAR, descreve-se ele, recuperando um acrónimo do tempo da guerra (fucked up beyond all recognition) como justificação para a sua absoluta incapacidade de se comprometer emocionalmente - dessa incapacidade, desse estado de FUBAR, salta precisamente a implacável violência emocional do filme (e provável centro da peça de Rattigan), como radiografia psicológica da geração que combateu na guerra, se viciou em fear and excitement e nunca mais o encontrou depois de 1940, ano da Batalha de Inglaterra (“1940 foi o ano favorito dele”, como bem percebe Weisz). Muito justo, e muito convincente, tanto mais que Davies se serve da folk (as canções no pub, ou nos flashbacks no metropolitano durante os bombardeamentos do Blitz) não para “certificar” a época mas para ajudar a compor, muito para além dos clichés do stiff upper lip, um retrato da britishness muito pouco habitual.

O que nos corta o entusiasmo, então, num filme que parece ter sido feito a regra e esquadro? A intrusão de um lirismo um pouco pomposo, algures entre o adorno e o sublinhado (às vezes, como na sequência inicial, Davies parece imitar outro Terence, o Malick), que cria um choque interessante com a frieza dos actores e a sobriedade do seu registo, mas resulta sempre excessivamente composto, até na fotografia (onde o soft focus vem deixar os actores numa espécie de névoa permanente), como uma impressão de “romantismo” que se acrescenta à superfície do filme sem que ele o pedisse. Dirão que este excesso ornamental é parte integrante do estilo de Davies, e que está em todos os seus filmes. Certíssimo. Mas é por isso que Davies sempre foi difícil de engolir.

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