É tão bom ser livre

Vamo-nos habituando a Christian Petzold, o que é uma boa coisa porque se trata de um dos mais interessantes cineastas alemães da actualidade.

Barbara, com data de 2012, é o terceiro filme de Christian Petzold a ser estreado em Portugal, e aparece escassos seis meses depois da estreia de um filme mais antigo, Jerichow, de 2009 (e antes disso, estreara-se Yella). Na sua ausência de espectacularidade e grandiloquência; no seu cuidado “humanista” na composição das personagens e ambientes em que se inserem; na espécie de “linha clara”, inteligência convertida em discrição, que domina as suas construções narrativas (com razoável influência, e já lá iremos, do clássico americano); na relevância, frequentemente irónica, do comentário social que os seus filmes produzem; nisto tudo, Petzold (que nasceu em 1960) parece hoje um herdeiro de alguém como Rudolf Thome, talvez o mais discreto elemento de uma geração anterior de cineastas alemães, a de Fassbinder ou Wenders.


Barbara leva-nos à RDA do princípio dos anos 80. É a história de uma médica berlinense (a excelente Nina Hoss, uma “regular” de Petzold) desterrada para uma terreola perto da costa do Mar do Norte (que também era a geografia de Jerichow) depois de ter tido a ousadia de pedir uma autorização para emigrar. Desterrada e vigiada, que a Stasi, mesmo nas berças, não brinca, e todos são, ou podem ser, “informadores”. Mas Petzold filma isto sem paranóia nenhuma, nem sequer revanchismo - o médico que controla Barbara é à sua maneira também uma vítima (e numa das melhores cenas, uma lição de pintura sobre a Lição de Anatomia de Rembrandt, sinaliza-lhe o lado em que está), e até o oficial da Stasi, se começa por ser um vilão reminiscente dos nazis languianos (esparramado numa cadeira com um sorriso cínico enquanto Barbara é revistada e humilhada), terá direito mais tarde, e sempre num contexto hospitalar, a um sopro de humanidade.

O que condiz perfeitamente com o carácter anódino da própria “reconstituição” da RDA, anos 80 - se não soubéssemos de antemão que eram esses o cenário e a data íamos demorar algum tempo a percebê-lo. Não há nem o folclore da östalgie (tipo Adeus, Lenine) nem aquilo é o lúgubre comboio-fantasma de As Vidas dos Outros, por exemplo. E praticamente toda a reconstituição de época é dada por sinais narrativos, é mais um “ambiente” do que um “cenário”, construído por detalhes directamente ligados ao comportamento e aos gestos das personagens - por todos, a opacidade furtiva e inquieta da acossada protagonista.

Há muita ironia a trabalhar em Barbara, dos diálogos (quando Barbara é acusada de ter um comportamento “separado”, ela que foi “separada” da sua vida num país definido pela sua “separação”...) a esta descrição de um ambiente totalitário em ponto pequeno e provinciano. Há também bruscas enxurradas de severidade, como a história da miúda fugida de um campo de trabalho, que virá a ser crucial para o desenlace. E há, claro, não pouca ambiguidade no olhar sobre o Ocidente, através da personagem (um ocidental) do namorado de Barbara, que a vem visitar em encontros-relâmpago e pretende fazê-la passar para o outro lado. Num desses encontros diz uma daquelas frases mágicas ao contrário, que parece que estragam tudo: que ganha muito bem e por isso Barbara não precisará de trabalhar quando passarem para o Ocidente (e somos nós, não é o filme, quem diz que é esta a frase que estraga tudo). Abre-se o caminho para o desfecho, mais irónico do que sacrificial; e no campo-contracampo dos últimos planos, quase estamos à espera que Petzold (que “adaptou” em Jerichow o Carteiro Toca Sempre Duas Vezes e pediu aos actores de Barbara que vissem o To Have and Have Not de Hawks) faça alguém dizer que aquilo “é o princípio de uma bela amizade”. Não faz, faz melhor ainda: corta para o negro do genérico, e apõe-lhe uma canção dos Chic que diz que “it''s so good to be free”.

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