A Palmaridade relativa

A desfaçatez de Paixão é o que mais nos cativa: Brian de Palma vem de um tempo em que se acreditava que a mise en scène era tudo, e de Palma tanto acreditou nisso que passou uma carreira a copiar e a repisar o estilo dos mestres.

Lembramo-nos da irritação que Brian de Palma provocava em João Bénard da Costa, que até inventou um adjectivo - “palmar” - para classificar os filmes dele... Mas desconfiamos que até JBC ia concordar que, numa altura em que o cinema americano de grande circulação se tornou, 9 em cada 10 casos, ele próprio “palmar”, pueril, tacanho nos horizontes e bárbaro na relação com a sua própria história, a “palmaridade” de de Palma não só aparece bastante mitigada como facilmente se confunde com um sopro de inteligência, frescura, estilo, capacidade de ter uma relação com a tradição, e um módico de rebeldia, evidentemente desalinhado com o mainstream da grande indústria hollywoodiana, tomado de assalto (nos melhores casos, tipo JJ Abrams, e isto é que dramático, que Abrams seja “dos melhores casos”) pelos filhos do casal Lucas/Spielberg, que têm em Star Wars o seu Citizen Kane.


É essa a desfaçatez de Paixão, e que mais nos cativa: de Palma vem de um tempo em que se acreditava que a mise en scène era tudo, e de Palma tanto acreditou nisso que passou uma carreira a copiar e a repisar o estilo dos mestres, Hitchcock à cabeça. Com melhores ou piores resultados conforme os momentos (porque nem sempre funciona bem), e seguramente conforme as perspectivas, Paixão é um filme que, até com um certo exibicionismo (classicamente a “palmaridade” capital de de Palma), tenta fazer da mise en scène, e de uma ideia de estilo no sentido mais próprio (e mais “caligráfico”) do termo, o essencial. A história - Rachel McAdams e Noomi Rapace, também elas cheias de “estilo”, sobretudo a primeira, em “jogo de massacre” de femmes verdadeiramente fatales - é razoavelmente anedótica, mesmo que o seu “fatalismo” diabolicamente trajado de Prada não deixe de reenviar - com intenção - quer para a memória do noir hollywoodiano quer para os demonismos do cinema alemão. Por boas razões: de Palma filma em Berlim, Paixão é um filme feito com capitais franceses e alemães, e um remake de Crime d''Amour, que foi o derradeiro título assinado por Alain Corneau. E se tudo se podia passar, em termos narrativos, mais ou menos da mesma maneira se o cenário fosse outro, é pelo ambiente que de Palma encontra a sua solução: articular o high tech da Berlim contemporânea (a Potsdamer Platz...), o mundo de imagens e 1000 ecrãs (como os olhos de certo doutor filmado por Lang) que é o nosso mundo, e uma coisa subterrânea a querer vir à superfície, os demonismos do caligarismo e do expressionismo que estão enterrados debaixo do high tech contemporâneo. Quando os planos de de Palma começam a ter sombras a formar diagonais, ângulos rectos e outras figuras geométricas, sempre conquistadas à “realidade” dos cenários; ou quando se põe a fazer coisas esquisitíssimas com o split screen, que pouco trazem à narrativa mas estão lá, para ver e para influenciar o estado de quem vê - quando ele faz isto, está a reiterar, aceitemos que até em demonstração pelo absurdo, que com ele a narração precede, e ultrapassa, a narrativa. Temos visto pouco disto nos filmes (de) americanos que se têm visto.

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